Abrigos lotados, acampamentos improvisados e viadutos – a dura vida dos venezuelanos em Manaus

O Amazonas é um dos estados brasileiros que recebeu mais imigrantes vindos da Venezuela. Uma parcela mora em abrigos lotados, mas grande parte vive em condições precárias.

Por Fabio Zuker
fotos de Thays Bittar
Publicado 8 de mai. de 2019, 17:55 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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“Todo ano a água chega, e acaba com a comida. Todo ano chega água do mar, sobe até dez metros, e destrói tudo”, diz o imigrante Juan Rojas sobre o delta do Orinoco, território tradicional dos indígenas warao. Com as mudanças do clima e a crise política na Venezuela, muitos waraos decidiram se mudar para o Brasil.
Foto de Thays Bittar

Na rua Tarumã, no centro de Manaus, não longe do centenário Teatro Amazonas, cartão postal da capital amazonense, vivem cerca de 115 indígenas warao da Venezuela, em um antigo edifício cinza, pertencente à igreja. Todos possuem algum grau de parentesco entre si, e são liderados pelo cacique Orlando Martinez.

Há dois anos eles vivem nesse edifício, apinhados entre salas, corredores e cozinhas. Antes, viviam acampados em barracos ao redor da rodoviária de Manaus, e em seguida foram movidos para um abrigo temporário, até que um acordo entre prefeitura e Igreja Católica lhes disponibilizou o local onde hoje estão. Do ponto de vista higiênico, a situação é precária, e pouco adequada para o desenvolvimento das dezenas de crianças, que brincam onde podem e tornam o ambiente menos desolador.

Segundo as lideranças warao, todas as crianças estão matriculadas na escola. A cozinha é toda movida a base de lenha, devido aos custos proibitivos do gás de cozinha: “A gente comprava gás. Custa 80 reais, mas dura apenas dois dias. Tem muita gente”, conta o cacique Orlando, comunicando-se com dificuldade em espanhol, sua segunda língua. Os imigrantes reclamam das condições em que vivem, do calor excessivo que faz nos quartos, tanto de dia como de noite, e da dificuldade da vida em um espaço tão pequeno com tanta gente.

O território de origem dos warao é a região do delta do Orinoco, no encontro entre o rio Orinoco, o terceiro maior da América do Sul, e o oceano Atlântico. Os warao, em seu território tradicional, vivem da pesca e do cultivo de mandioca, do inhame, do milho e da caça, além da coleta de frutas como muriqui e açaí. “Nós nascemos dentro das montanhas. Havia pouca gente, não tinha nem arroz, nem macarrão, nem branco, nem remédio”, conta o cacique. Sem entender o fluxo de embarcações em uma metrópole como Manaus, nem os locais adequados de pesca nos rios, não conseguem peixes. Sem terrenos próprios para cultivarem, não podem plantar.

Devido à dupla dificuldade linguística, conseguir empregos formais é quase impossível, empregos esses aos quais imigrantes venezuelanos não-indígenas conseguem aceder, ainda que com dificuldades. Resta aos warao realizar bicos, como serviços de capinagem de terrenos e no ramo da construção civil. Hoje, o cacique Orlando se sustenta vendendo lâminas de barbear, carregadores e protetores de celular no farol, atrás do edifício da rua Tarumã. Cada um dá seu jeito, como pode.

Projetos petroleiros iniciados nos anos 1960 causaram significativos danos ambientais ao território tradicional warao, iniciando um processo de desertificação e salinização das águas do rio Orinoco, na região do delta. Juan Rojas, também indígena warao que vive no edifício da rua Tarumã, conta que era plantador e pescador. “Todo ano a água chega, e acaba com a comida. Todo ano chega água do mar, sobe até dez metros, e destrói tudo”, afirma Rojas.

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    “O que eu gosto mesmo é de trabalhar no campo. Plantar banana, mandioca e milho”, diz ele. O primeiro trabalho que Juan teve em Manaus foi como vendedor de água nos semáforos: “Antes não tinham muitos venezuelanos, agora tem muitos. Cada um tem o seu semáforo”, relata Rojas, que come apenas uma vez por dia, no final da tarde, com o dinheiro arrecadado pelas mulheres warao nos semáforos. “O governo vem uma vez a cada três semanas, deixa trinta frangos, e tudo se acaba em apenas um dia”, afirma.

    Devido às condições ambientais críticas do delta do Orinoco, há quase 60 anos os warao mantém estreitas relações de trocas com a cidade, vendendo redes, chapéus e artesanato, obtendo em retorno alimentos e medicamentos. Com a crise econômica que assola a Venezuela, porém, tais formas de comércio se tornaram impossíveis. “O problema é o que está acontecendo na Venezuela. Muita gente morrendo de fome”, conclui Rojas.

    A trajetória de chegada do delta do Orinoco até Manaus não é fácil. “Viemos caminhando a pé e pedindo carona. Um mês de caminhada. Um mês comendo mangas e laranjas”, relata o cacique Orlando. Muitos chegam com enfermidades, como tuberculose, gripe e doenças de pele. Alguns morreram no caminho. Apesar das dificuldades que passam aqui e do trajeto penoso entre as aldeias warao e Manaus, o pouco dinheiro que juntam em território brasileiro já é suficiente para enfrentar o caminho de volta e levar alimentos e remédios aos parentes que ficaram. “Queremos voltar à Venezuela, mas está muito difícil. Não tem dinheiro. Não tem comida”, conclui o cacique, com um sorriso triste, sem deixar de agradecer a hospitalidade dos brasileiros.

    “Viemos caminhando a pé e pedindo carona. Um mês de caminhada. Um mês comendo mangas e laranjas”

    por Cacique Orlando
    Líder warao

    É comum escutar imigrantes venezuelanos relatarem que não queriam estar aqui, que não vieram por vontade própria. Frente a situações de violência como os  ataques em Pacaraima, que no dia 19 de agosto de 2018 resultou na expulsão de mais de mil imigrantes da cidade fronteiriça em Roraima por parte de cidadãos brasileiros armados de paus e pedras, os venezuelanos reforçam que vieram porque não havia condições básicas de sobrevivência na Venezuela.

    Com hiperinflação, falta de alimentos e medicamentos, viver na Venezuela tornou-se mais que uma luta diária. Comerciantes têm dificuldades em calcular os preços dos alimentos, que desfalcam as prateleiras dos mercados. Apagões de energia deixam as cidades sem luz por dias a fio e o sistema de saúde colapsou, permitindo o ressurgimento de doenças antes controladas, como o sarampo, segundo o relatório da ONG internacional Human Rights Watch publicado no início de abril de 2019. “Com um salário mensal, se faz apenas uma refeição na Venezuela”, relata Andrés Peres, 25 anos, que vive com três filhos e a esposa, Ana Cuparis, embaixo de um viaduto ao lado da rodoviária.

    A crise na Venezuela tem origem nas disputas políticas internas entre chavistas e seus opositores. O projeto de perpetuação do chavismo no poder, sob as égides de Nicolás Maduro, foi catastrófico para o país, que não soube diversificar sua base de produção com o dinheiro originário da alta do petróleo. Com a queda internacional do valor do barril, veio a bancarrota. Por outro lado, a oposição sucessivamente minou os processos eleitorais e, ao apoiar as sanções econômicas norte-americanas, torna praticamente impossível a recuperação econômica do país.

    Roupas dos imigrantes que moram embaixo do viaduto próximo à rodoviária secam ao sol.
    Foto de Thays Bittar

    Estima-se que no final de 2018 cerca de 3 milhões de venezuelanos – 10% da população – já haviam deixado o país. Apesar do elevado índice de imigrantes, o governo de Nicolás Maduro nega a existência da migração em massa.

    O Brasil, país que possui uma fronteira seca, ou seja, que pode ser atravessada a pé, recebeu parte considerável do fluxo de imigrantes, embora poucos queiram permanecer por aqui. Por conta da língua, costumam utilizar o país como passagem para chegar aos demais membros do Cone Sul, como Argentina, Chile e Uruguai. Ainda assim, a Operação Acolhida, idealizada pelo governo do ex-presidente Michel Temer, é tida como insatisfatória, deixando grande parte dos imigrantes sujeitos à própria sorte.

    Runny Rodriguez imigrou para o Brasil sozinho, vindo da cidade de Anzoátegui. Tem apenas 19 anos. Na Venezuela, queria estudar para trabalhar com segurança industrial. Em Boa Vista, trabalhou como carregador, mas as condições na capital roraimense lhe pareciam precárias: “Os brasileiros e venezuelanos roubam uns aos outros", conta Rodriguez. Ameaçado por policiais, empreendeu uma caminhada de sete dias, sozinho, entre Boa Vista e Manaus. A estrada é margeada por um trecho denso da floresta amazônica. Sobreviveu comendo o que encontrava no caminho. Toda sua família migrou para o Peru, onde o jovem pretende chegar tão logo junte um pouco de dinheiro.

    Imigrantes cozinham em fogo aberto aceso com restos de madeira no acampamento improvisado próximo à rodoviária de Manaus (AM).
    Foto de Thays Bittar

    No início de 2019, cerca de 300 imigrantes venezuelanos viviam ao redor da rodoviária de Manaus. Dormindo sob lonas de caminhão, em barracas improvisadas ou em colchões no chão, a situação deles é de extrema vulnerabilidade. Eles cozinham ao ar livre, não possuem local adequado para higiene e estão sujeitos às intempéries climáticas de uma cidade amazônica, que oscila ao longo do dia com frequência entre chuvas torrenciais e sol abrasador.

    Enquanto documentava as condições precárias dos venezuelanos, a fotógrafa Thays Bittar foi interpelada diversas vezes – os imigrantes pediam dinheiro e oportunidades de trabalho. Comovida com a situação, a fotógrafa propôs ajuda-los na confecção de currículos. Depois de montar um estúdio improvisado, fez retratos 3x4 e organizou os documentos com o perfil e a experiência profissional de cada um.

    No acampamento improvisado, a busca por empregos parece ser, de fato, o tema mais frequente das conversas diárias, a preocupação cotidiana dos imigrantes. Uma jovem venezuelana preferiu não dar entrevista nem ter as suas fotos divulgadas – ela havia acabado de conseguir um emprego e tinha receio que a patroa descobrisse onde morava, e por isso pudesse demiti-la.

    Um grupo de amigos imigrantes venezuelanos moram embaixo deste viaduto, próximo à rodoviária de Manaus (AM).
    Foto de Thays Bittar

    Todos discutem a possibilidade de que sejam transferidos para um abrigo a qualquer momento. Mas muitos preferem ficar ao redor da rodoviária. "Não convém, é muito longe do centro”, afirma Andrés Perez. Diante do elevado custo de transporte para se locomover na cidade, ele tem receio de ficar ilhado longe das regiões onde consegue fazer algum dinheiro. Em El Tigre,  na Venezuela, sua cidade natal, Perez trabalhava como pintor na construção civil. No Brasil, “trabalho com diárias, capinando, cuidado de carros, o que der”, explica Perez, enquanto a esposa pede dinheiro nos faróis. Além de manter os filhos no Brasil, ele consegue economizar um pouco de dinheiro para enviar à Venezuela.

    “Minha história é muito triste” contou Ana, esposa de Perez, antes de termos que interromper a entrevista. Uma briga entre indígenas warao e venezuelanos não-indígenas, que dividem o espaço ao redor da rodoviária, Ana tomou uma pedrada na barriga e teve que ir ao hospital. O estado não era grave, mas ela quase quebrou uma costela. No dia seguinte, no farol e sob calor intenso, já estava pedindo dinheiro para comprar comida para os filhos.

    “Quero sair daqui. Muita briga. Ontem mesmo atingiram minha mulher com uma pedra na barriga. Quero buscar um quarto para alugar”, reflete Perez. Seu planos para o futuro? “Quero conseguir um trabalho, trabalhar um ou dois anos e voltar à Venezuela, se a situação melhorar. Senão, trazer meu pai e minha mãe para cá”, diz ele. “Lá estão em guerra, matando muitos venezuelanos.”

     

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