Órfãos das queimadas do Pantanal, tamanduás-bandeira voltam à natureza

Projeto do Instituto Tamanduá no Mato Grosso do Sul resgata, reabilita e devolve à natureza jovens animais.

O rádio-mochila de Tupã informa a localização do animal à equipe do Instituto Tamanduá através de sinais VHF e um aparelho GPS.

Foto de João Marcos Rosa
Por Paulina Chamorro
Publicado 3 de fev. de 2023, 10:00 BRT

Quando começaram os incêndios que atingiram 26% da área do Pantanal, em 2020, alguns impactos na biodiversidade do bioma já eram previstos: falta de água e alimentos, alterações da dinâmica reprodutiva, perda de habitat, muitas animais mortos e feridos pelas chamas, atropelamentos e uma demanda crescente por áreas e cuidados para recuperação de animais resgatados.

Em 2021, a seca persistiu, rios secaram e o fogo avançou sobre quase 13% da área do bioma. 

Ainda assim, há histórias da resiliência da flora e da fauna. Além da queda recorde no número de focos de calor – em 2022 houve diminuição de 80% em relação a 2021 –, animais resgatados nos incêndios estão voltando à natureza. Desde 2020, na pousada Aguapé, na região de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, o Instituto Tamanduá cuida e recupera filhotes de tamanduá-bandeira órfãos, que perderam as mães no fogo, mas foram resgatados. 

“O fogo causa afugentamento. Podemos dizer que o atropelamento também é de vítima do fogo, pois os animais aparecem nas estradas fugindo”, diz Alexandre Martins Costa Lopes, vice-presidente do Instituto Tamanduá. O projeto chama Órfãos do Fogo e conta com o apoio da Fundo Internacional para o Bem-estar Animal, Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) de Campo Grande, Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul e a pousada, além de doações feitas por pessoas físicas pelo site do Instituto.

Parentes das preguiças e tatus – que juntos das outras espécies de tamanduás formam o grupo dos xenartras –, os tamanduás-bandeira são lentos e têm pelagem escura, o que os torna quase invisíveis na estrada à noite. Os motoristas não conseguem desviar, e atropelamentos são frequentes. 

[Ficha animal: Tamanduá-bandeira]

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    Fim de tarde na pousada Aguapé, na região de Aquidauana, Pantanal Sul-matogrossense, onde o Instituto Tamanduá coordena as ações do projeto Orfãos do Fogo desde 2020.

    Foto de João Marcos Rosa
    À esquerda: No alto:

    A veterinária Kai Abreu alimenta os tamanduás com mamadeira. Até atingir nove meses de idade, os tamanduás ficam em um recinto de manutenção, de 12 m².

    À direita: Acima:

    O contato com os humanos é mais frequente nos primeiros meses de vida. No recinto de imersão, onde ficam antes de serem soltos, o conivívio com humanos é restrito.

    fotos de João Marcos Rosa
    À esquerda: No alto:

    O biólogo Alexandre Martins e a médica veterinária Fernanda Jacoby carregam um tamanduá-bandeira sedado depois de realizar exames.

    À direita: Acima:

    Antes de serem soltos, os animais são sedados para coleta de sangue, aferição de sinais vitais e medições.

    fotos de João Marcos Rosa

    [Página especial: Tudo sobre o bioma Pantanal]

    A ideia do projeto começou em novembro de 2020, em visita da equipe do Instituto Tamanduá ao Pantanal. Na passagem pelo Cras no Pantanal Sul, viram a necessidade de apoiar e ajudar a encontrar soluções para a demanda crescente de filhotes que chegavam. Os pequenos tamanduás precisam ser alimentados e observados de perto, e a quantidade de animais resgatados sobrecarregava as instituições.

    O instituto buscou recursos para absorver os filhotes que chegavam ao Cras e reintroduzir indivíduos na natureza da forma “mais correta possível”, segundo Alexandre. 

    “Não se sabe exatamente a receita de como fazer. Tudo está sendo desenvolvido com muita observação, pesquisa e algumas referências”, diz Alexandre. “Como por exemplo, alguns projetos na Argentina, como o de Iberá, que trabalha com esse processo de realocação e reintrodução de filhotes há muito tempo.” O projeto argentino começou em 2006, e contou com apoio do Instituo Tamanduá.

    Com o início do projeto, o primeiro desafio foi dar o suporte a seis filhotes, de idades diferentes. Dois tipos de recinto foram construídos na pousada Aguapé – um de manutenção, com 12 m² quadrados, onde os filhotes são mantidos até os nove meses de vida, e outro de imersão, com 300 m², onde os filhotes têm menos contato com seres humanos. O cuidador coloca até duas refeições por dia e em horários diferentes para que o animal não se habitue.

    Para a soltura, a equipe trabalha com algumas orientações, como tamanho e idade. Uma rádio-mochila é instalada para monitoramento de telemetria, o que exige que o animal tenha mais de um ano e pese mais de 22 kg. A rádio-mochila tem um sistema VHF, que envia informações do local onde está via sinal de rádio, e um equipamento de GPS com comunicação satelital, que registra a coordenada a cada duas horas.

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        Tamanduá-bandeira carrega filhote  na região de Aquidauana, no Pantanal Sul-matrogrossense. Os filhotes podem ficar no dorso da mãe por até nove meses após o nascimento. Com um ano, mãe e cria se separam.

        Foto de João Marcos Rosa

        Com nove meses, os animais já podem passar para o recinto de imersão, mais aberto, com 300 m² e menos contato com humanos.

        Foto de João Marcos Rosa

        Outro ponto importante é a estação do ano ideal. Os pesquisadores preferem, por segurança, não fazer a soltura no inverno pantaneiro, época de chuvas, com mais rios. Os jovens tamanduás-bandeira têm mais dificuldades de encontrar pontos de alimentação em terrenos tão alagados.

        O Tupã foi liberado na seca, logo depois do inverno, e já começou a dispersar. 

        Tupã, o primeiro resgatado livre

        A primeira vitória, com sucesso, veio em 24 de agosto de 2021, com a soltura do Tupã. O pequeno tamanduá-bandeira foi recebido no Cras ainda filhote, com entre dois e três meses, e chegou na pousada Aguapé com nove meses de vida – onde foi mantido por mais quatro meses no recinto de imersão.

        Nesse período, o animal contou com um companheiro, mas de outra espécie: um tatu. “Ele morava com o Tupã no recinto, interagindo. Sempre pegando um pouco de comida”, conta Fernanda Jacoby, veterinária que trabalhou no projeto acompanhando os primeiros filhotes.

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          Com ajuda de um receptor de sinal VHF, a médica veterinária Kai Abreu e o biólogo Alexandre Martins procuram pelos animais reintroduzidos na natureza carregando uma espécie de mochila que leva um transmissor para seu monitoramento.

          Foto de João Marcos Rosa

          No dia que o recinto foi aberto para a soltura dos animais, a equipe do instituto e o fotógrafo João Marcos Rosa flagraram um comportamento inesperado. Como Tupã demorou para sair do recinto, o tatu voltou por duas vezes para buscá-lo.

          Nos primeiros 15 dias, Tupã não saiu de perto do recinto, ficou nos capões em volta. A equipe começou a reduzir a disponibilidade de alimento, e o pequeno começou a se distanciar. “Quando eles são bem pequenos, fazemos uma espécie de passeio no entorno da área para eles conhecerem e identificarem novos cheiros”, conta a veterinária Karina Abreu, que acompanhou os primeiros indivíduos do projeto. “Isso é para começarem também a experimentar alimentos naturais, como formigas e cupins.” 

          Quando esta repórter visitou o projeto, em outubro de 2021, pode acompanhar o monitoramento do Tupã. O animal já dormia tranquilamente em um capão distante da pousada. Os locais onde têm ficado mais tempo e a alimentação são algumas informações coletadas que futuramente serão cruzadas com o uso do habitat e o padrão de dispersão de cada indivíduo solto.

          Atualmente, o Projeto Órfãos do Fogo contabiliza um total de oito animais reabilitados e soltos na natureza. Outros sete estão sendo cuidados nos recintos.

          Mesmo com a porta do recinto aberta, Tupã relutou em sair para liberdade. Inesperadamente, um tatu-peba selvagem voltou duas vezes ao recinto do tamanduá para “buscá-lo".

          Foto de João Marcos Rosa

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            A equipe de pesquisadores observa o tamanduá-bandeira Tupã em seus primeiros minutos em liberdade.

            Foto de João Marcos Rosa

            Manter esses animais na natureza e trabalhar pela recuperação da espécie é de extrema importância para a biodiversidade do Pantanal. O tamanduá-bandeira é uma espécie que está na Lista Nacional de espécies ameaçadas de extinção, na categoria vulnerável. Porém, em alguns estados está quase extinto. No caso do Pantanal Sul, existe outra característica importante.

            “Temos uma população geneticamente muito importante no Mato Grosso do Sul e estudos mostram que os tamanduás são acometidos por atropelamentos”, explica Alexandre. “E isso interfere muito na distribuição das espécies no Pantanal. Então, trabalhar na recuperação e reintrodução destes indivíduos, é pensar também na manutenção e a viabilidade genética da espécie no bioma.”

            O projeto conta hoje também com doações de pessoas físicas. Com a chegada de cada nova temporada de incêndios, os desafios seguem e, possivelmente, aumentam. Os pesquisadores e pesquisadoras do Instituto Tamanduá trabalham em buscar recursos para adquirir mais equipamentos e conseguirem mais tempo de acompanhamento dos indivíduos – objetivos essenciais para compreender a adaptação, reprodução e dispersão genética da espécie.

            Os xenartra vagam pelas matas da América do Sul há mais de 60 milhões de anos, o que faz deles um dos grupos de mamíferos placentários mais antigos da América do Sul. A reintrodução dos filhotes na natureza faz jus a essa longa e rica história.

            O Pantanal precisa dessa chance. E de boas notícias.

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