Poeira do Saara faz mal à saúde – mas é crucial para a vida e o clima da Terra

Nuvem de poeira do Saara é uma versão superdimensionada daquelas que atravessam o Atlântico o tempo todo, transportando partículas que irritam os pulmões, mas também fertilizam a vida dos oceanos e a vegetação.

Por Alejandra Borunda
Publicado 10 de nov. de 2020, 07:00 BRT
Um satélite da NOAA (Administração Atmosférica Oceânica Nacional) captou as imagens do turbilhão de poeira do ...

Um satélite da NOAA (Administração Atmosférica Oceânica Nacional) captou as imagens do turbilhão de poeira do Saara afastando-se da costa da África Ocidental em 16 de junho de 2020.

Foto de Gif Courtesy NOAA

Uma enorme nuvem de poeira chegou a Porto Rico em meados deste ano, cobrindo e manchando o céu noturno de um branco leitoso. O ar ficou mais pesado com um aumento de poeira a cada hora. Olga Mayol-Bracero, química atmosférica da Universidade de Porto Rico, em Rio Piedras, verificou as leituras na estação de observação atmosférica operada por ela na ponta nordeste da ilha. Os números eram os mais elevados de todos os seus 16 anos de medições na estação.

“Eu não conseguia enxergar o céu ou as nuvens, apenas uma camada acinzentada”, conta ela. “Definitivamente, nunca observamos algo assim.”

A poeira sobre Porto Rico representava a borda dianteira de uma nuvem gigante que havia partido do deserto do Saara e atravessado o Oceano Atlântico por mais de 8 mil quilômetros, impregnando os céus da América do Norte e além.

Essa nuvem de poeira em especial é ao mesmo tempo notável e totalmente comum. A cada ano, essa espécie de nuvem varre o Saara, arrastando cerca de 180 milhões de toneladas de poeira repleta de minerais de lagos secos. Milhares de quilômetros de distância mais à frente na direção do vento, os grãos finos da poeira determinam tanto a vida dos locais onde se depositam quanto o clima como um todo.

Mas a nuvem deste ano é impressionante porque parece ser a mais espessa e densa a atravessar desde o início desse monitoramento por satélite, em 1979. Além disso, a nuvem transporta toneladas de partículas finas que irritam os pulmões em direção à América do Norte, onde há um número expressivo de doenças respiratórias crônicas incapacitantes que podem levar à morte.

Nuvem diferente

As extensões de deserto seco no norte da África são as maiores e mais constantes fontes de poeira do mundo. Dunas de areia geralmente não fornecem poeira – somente ventos mais intensos são capazes de suspender partículas tão pesadas. Mas partículas finas de poeira geralmente se acumulam em cavidades ou áreas planas na paisagem do deserto que, em algum momento no passado, contiveram água. Podendo ocorrer durante o ano todo, uma única ventania forte que passe pela superfície desses locais repletos de poeira é capaz de lançar toneladas de poeira no ar.

Sob as condições certas, que normalmente ocorrem entre o fim da primavera e o início do outono [do hemisfério norte], uma grande quantidade de poeira é arrastada para a “camada de ar saariana”: um acúmulo de ar quente e seco, normalmente 1,6 quilômetro ou mais acima da superfície terrestre e com espessura aproximada de 3,2 quilômetros.

No verão, uma onda de poeira é arrastada do continente em poucos dias. Quando as massas de ar mais frio do oceano lançam a nuvem na atmosfera, a poeira pode flutuar por dias, se não semanas, a depender da altura e umidade do ar. Os ventos alísios de leste a oeste arrastam a nuvem através do Atlântico em direção ao Caribe e aos Estados Unidos em alguns dias. Durante sua circulação, fragmentos da nuvem de poeira caem formando uma chuva constante de partículas.

Geralmente, a poeira se espalha por centenas de metros acima da superfície da Terra. Mas essa nuvem não é apenas muito maior que o normal: ela também está muito mais baixa. Quando a nuvem alcançou o solo perto do Caribe e do sul dos Estados Unidos na semana passada, a chuva de poeira estava mais próxima do que o habitual de onde as pessoas vivem e respiram.

“Os parâmetros que analisamos atingiram valores que nunca havíamos observado, em termos de material particulado”, afirma Mayol-Bracero. A qualidade do ar em Porto Rico saltou para condições “insalubres” quando a nuvem baixou sobre a ilha. Mesmo com as janelas fechadas, a poeira entrou e se depositou nas superfícies, e foi inalada pelas pessoas.

Pessoas assistem ao pôr do sol de cores incomuns, tingido pela nuvem de poeira do Saara suspensa no ar, em Havana, em 24 de junho de 2020. A poeira cobriu o Caribe antes de seguir para o norte, em direção à região continental dos Estados Unidos.

Foto de Ramon Espinosa, AP Photo

A poeira faz mal à saúde

A poeira da nuvem do Saara é composta principalmente por minúsculos fragmentos de minerais que já foram rochas no passado. Normalmente, quando uma nuvem passa pelas Ilhas Canárias espanholas, localizadas na direção do vento a algumas centenas de quilômetros da origem da nuvem no deserto, a maior parte da poeira que cai possui diâmetro inferior a 20 mícrons, metade do tamanho de uma partícula visível a olho nu. Quando uma nuvem atravessa o oceano até o Caribe, a poeira que cai é ainda mais fina — com diâmetro inferior a 10 mícrons — e muitos dos fragmentos restantes são menores ainda.

Os cientistas sabem há muito tempo que respirar partículas finas não faz bem para os pulmões. Existem diversas fontes de partículas finas insalubres: a queima de combustíveis fósseis e poluentes agrícolas lançam no ar pequenas partículas de materiais irritantes aos pulmões. E a poeira, à medida que avança, pode provocar expressivos males à saúde das comunidades localizadas na direção do vento.

Em um estudo  publicado recentemente no periódico Nature Sustainability, os cientistas monitoraram os efeitos de nuvens de poeira arrastadas a partir da depressão Bodèle, no Chade, uma das maiores e mais conhecidas fontes de poeira do mundo. A poeira dessa depressão foi encontrada em locais tão distantes quanto a Groenlândia e a América do Sul, mas suas nuvens são mais espessas e mais prejudiciais na África Ocidental e na África Subsaariana. O ar nessas regiões contém tanta poeira que às vezes é difícil respirar.

Os cientistas reuniram 15 anos de registros do impacto da poeira na qualidade do ar em comunidades localizadas na direção do vento no continente africano. Foi descoberta uma forte correlação devastadora entre a elevada densidade do ar carregado de poeira e a probabilidade de bebês recém-nascidos completarem um ano. Na África Ocidental, se ocorresse um aumento na densidade da poeira de cerca de 25% — 10 microgramas de poeira a mais a cada metro cúbico de ar — haveria uma redução de 18% na chance de sobrevivência do bebê.

“É uma banalidade dizer: ‘respirar poeira faz mal’”, afirma Jen Burney, cientista ambiental da Universidade da Califórnia, em San Diego, Estados Unidos, uma dos autores do estudo. “Mas agora é possível determinar —nitidamente — as diferenças nos impactos reais entre locais atingidos por essas nuvens e locais não atingidos, embora próximos. Houve um aumento da mortalidade infantil em determinados locais devido à carga maior de poeira.

Uma nuvem como a atual, conta Burney, é um sistema concentrado de distribuição de partículas finas que prejudicam a saúde humana. As doenças respiratórias são as principais causas de morte e invalidez em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos. Os perigos da exposição à baixa qualidade do ar são bastante conhecidos e os cientistas associam longos períodos dessa exposição a riscos maiores de morrer de covid-19.

Uma chuva de fertilizante

Normalmente, as nuvens arrastadas do norte da África não são tão densamente carregadas ou próximas ao solo quanto essa. Mas toda massa de poeira afeta a vida e o clima em locais muitas vezes milhares de quilômetros distantes de sua origem.

“Um erro de percepção que venho observando é a noção de que a poeira proveniente do Saara é um sinal apocalíptico!”, afirma Geeta Persad, cientista climática da Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos. “Essa é uma versão incomum desse tipo de fenômeno devido a sua grande dimensão, mas acontece todos os anos.”

Os fragmentos minerais que formam a nuvem de poeira do Saara são geralmente ricos em ferro e fósforo, nutrientes necessários ao crescimento da vegetação terrestre e do fitoplâncton no mar. À medida que grãos de pó caem da nuvem em movimento e se depositam na superfície ensolarada do oceano, fertilizam os organismos fotossintetizadores existentes no mar, que, muitas vezes, apresentam uma grande carência desses elementos. Mais de 70% do ferro disponível aos fotossintetizadores oceânicos no Atlântico é proveniente da poeira do Saara, segundo um estudo de 2014.

A poeira tem a mesma utilidade para a Amazônia. A floresta equatorial é um dos locais mais produtivos em termos biológicos do mundo, mas o solo que sustenta as árvores da floresta é notoriamente pobre em alguns elementos essenciais ao crescimento — sobretudo em fósforo. Grande parte do solo da bacia não possui fósforo suficiente para sustentar a abundância de vida existente nela e uma característica básica do habitat da floresta equatorial — a chuva — lixivia qualquer fósforo não utilizado quase tão rápido quanto esse elemento aparece.

Como é possível haver uma riqueza biológica tão vasta na Amazônia em solos tão pobres em nutrientes? Algumas equipes de cientistas suspeitam que a resposta para essa pergunta poderia estar nas minúsculas partículas de poeira suspensas que, conforme sabemos, atravessam o Atlântico há milhões de anos. É de amplo conhecimento entre os cientistas que essa poeira contém fósforo. Em 2015, uma equipe calculou que o fósforo presente nessa poeira poderia basicamente completar a diferença que faltava entre a necessidade de fósforo da floresta tropical e o aparente baixo teor existente em seus solos exauridos.

A supressão de tempestades

Segundo muitos cientistas, a poeira transportada na alta atmosfera desempenha ainda outro papel na bacia do Atlântico: ajuda a suprimir a formação e o fortalecimento de ciclones tropicais.

Camadas de ar repletas de poeira, como a que transporta a atual nuvem densa, costumam ser totalmente áridas — uma má notícia para tempestades tropicais, alimentadas pelo calor e pela umidade. Assim, se uma tempestade que estiver se formando e em ascensão na atmosfera alcançar a camada de poeira, o ar seco ajudará a dissipá-la, como o fogo sem o oxigênio necessário para continuar queimando.

As camadas de poeiras geralmente são impulsionadas por fortes ventanias, razão pela qual conseguem atravessar o oceano em poucos dias. Uma tempestade que estiver se transformando em um turbilhão imenso pode ter a parte superior cortada pelo vento, impedindo que aumente de tamanho.

Por ora, é uma boa notícia, já que está previsto que esta temporada de furacões será mais intensa do que o normal. O gerenciamento de emergência está bastante preocupado com as consequências de um grande furacão que venha a atingir a América do Norte em meio a pandemia de covid-19, dificultando as iniciativas de recuperação de desastres. Mas a temporada de poeira é mais intensa em junho e julho, ao passo que a temporada de furacões atinge seu auge em agosto e setembro, então qualquer eventual efeito de enfraquecimento que ocorra neste momento é provavelmente temporário, ponderam os meteorologistas.

Curinga climático

As ações humanas para conter as mudanças climáticas podem determinar a frequência futura das nuvens de poeira, sua espessura e dispersão.

“Ao que parece, houve um aumento na poeira durante o século 20”, afirma Natalie Mahowald, cientista climática da Universidade de Cornell. Segundo ela, quase metade do aumento provavelmente é devido às mudanças climáticas; a outra metade provavelmente é afetada pelas alterações no uso do solo do Saara em razão da intensificação das pressões agrícolas e humanas.

Mas não se sabe ao certo quais seriam os efeitos climáticos futuros de um aumento na poeira, uma vez que a poeira pode tanto aquecer quanto esfriar o planeta. Quando nuvens de poeira de cor clara ficam suspensas sobre o oceano, elas refletem o calor proveniente do sol que a superfície escura do oceano absorveria caso não houvesse essa nuvem. Contudo, por outro lado, quando a poeira se deposita em superfícies brilhantes como a neve ou o gelo, ela faz o contrário, absorvendo o calor solar e acelerando o derretimento do gelo.

A poeira também altera a formação dos diferentes tipos de nuvens. Às vezes, a poeira se distribui em um banco de nuvens refletoras que podem desviar o calor extra — e, às vezes, forma nuvens que mantêm o calor próximo à superfície da Terra.

E ainda existem maneiras mais complexas da interação entre a poeira e o clima. Por um lado, sua capacidade de fertilizar organismos fotossintetizantes é tão intensa que, nas condições certas, pode provocar explosões populacionais que resultam na retirada do dióxido de carbono da atmosfera. A força fertilizante da poeira pode ter sido responsável por pelo menos um quarto da alteração no teor atmosférico de dióxido de carbono que provocou a última era glacial da Terra.

“Esses tipos de fenômenos são bastante poderosos”, afirma Mahowald. “A meu ver, é impressionante a capacidade de transporte e arrasto da atmosfera — na verdade, da própria Terra — por distâncias tão grandes e com efeitos tão amplos.”

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