“Passei a vida perguntando por que sobrevivi ao Holocausto”, diz homem preso pelos nazistas aos 7 anos
Nascido na antiga Tchecoslováquia, Thomas Venetianer perdeu praticamente todos os familiares, mas ele, o pai e a mãe resistiram “milagrosamente” aos campos de concentração e se restabeleceram em São Paulo no fim dos anos 1940.
Thomas Venetianer aponta para alguns dos vários quadros de motivos florais que preenchem as paredes da sala de estar de seu apartamento e diz, um pouco encabulado: “Fui eu quem fiz”. As habilidades pictóricas do engenheiro nascido na antiga Tchecoslováquia, entretanto, remetem a memórias agridoces. Durante a primeira infância, na cidade de Kosice, atual Eslováquia, os pais trabalhavam fora e a babá incentivava a vocação do garoto judeu para o desenho. Mas foi aos sete anos, quando esteve preso por cinco meses no campo de concentração nazista de Terezín, atual República Tcheca, que o menino aprimorou as técnicas de pintura. Os quadros na parede o levam, assim, para estes dois ambientes: o aconchego do lar e o terror arquitetado pelo nazismo.
A história de Tom, como gosta de ser chamado pelos amigos, é marcada pela dualidade dos tenebrosos primeiros anos e uma vida adulta luminosa no Brasil, onde chegou com os pais em 1948. Vítimas do Holocausto, os três sobreviveram aos campos de concentração onde estiveram enclausurados entre 1944 e 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, cujo início se deu há exatos 80 anos, nos primeiros dias de setembro de 1939, quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia.
Pelo menos 19 parentes próximos de Tom, entre tios, tias e primos, foram exterminados pelo regime nazista, assim como outros 6 milhões de judeus europeus. Aos 81 anos, Tom é engenheiro aposentado, e vive há 40 anos com a esposa, a também sobrevivente húngara Suzana. Ele recebeu a reportagem da National Geographic Brasil no apartamento em que reside na cidade de São Paulo para contar, em uma tarde de agosto, com memória prodigiosa, o que viu nos piores anos de sua vida e como seguiu em frente.
“Não acho que faz sentido receber honrarias, fomos vítimas das loucuras genocidas do nazismo e tivemos de achar novo sentido para nossas vidas. ”
Holocausto é o nome que se dá ao genocídio de cerca de 6 milhões de judeus pelo regime nazista alemão de Adolf Hitler e seus colaboradores durante a Segunda Guerra. Tom tinha apenas sete anos quando foi levado para o campo de concentração de Terezín, ao lado da mãe. Por ser criança, muitas de suas memórias são misturadas às dela, mas ele tem imagens claras dos horrores que viveu. Recorda com precisão, por exemplo, de quando o pai foi separado dele e da mãe no campo de Sered. “Papai veio correndo em minha direção e foi atingido no ombro por um sádico oficial da SS com um bastão de madeira, caindo no chão ensanguentado.”
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O pai de Tom era químico farmacêutico e a mãe contadora em um banco. A família era de classe média alta, o que permitia que Tom ficasse sob os cuidados de uma babá – a primeira a notar as habilidades pictóricas do menino. A sobrevivência da família Venetianer deveu-se a algumas doses de, pode-se dizer, sorte. A primeira é que a cidade natal deles, Kosice, hoje parte da Eslováquia, foi anexada ao território húngaro em 1938.
A Hungria lutou junto do Eixo, composto por Alemanha, Itália e Japão. Isso evitou que judeus húngaros fossem deportados para campos de concentração até 1944, quando Adolf Hitler decidiu invadir o território húngaro depois de descobrir que o país negociava um armistício com os inimigos. Foi então que os horrores do nazismo tomaram sua forma mais perversa para Tom.
De 12 mil, apenas 325 crianças sobreviveram a Terezín
Localizado ao norte de Praga, República Tcheca, Terezín, em alemão chamado de Theresienstadt, foi originalmente um resort reservado à nobreza tcheca no século 18. Em 1940, o governo alemão designou a Gestapo, polícia secreta nazista, para transformar o local em gueto e campo de concentração a fim de abrigar, principalmente, judeus da então Tchecoslováquia. Mais de 160 mil pessoas foram enviadas para lá, entre eles Thomas Venetianer e a mãe, Elizabeth. Dessas, 35 mil morreram no campo, 90 mil foram redirecionadas para campos de extermínio e cerca de 4,8 mil sobreviveram. Estima-se que pouco mais de 12 mil crianças tenham nascido ou sido levadas para Terezín, das quais 325 continuaram vivas após o Holocausto.
Terezín diferencia-se da maioria dos outros campos de concentração por ter abrigado intelectuais judeus como filósofos, cientistas, rabinos, acadêmicos, músicos e artistas em geral. Isso criou uma atmosfera cultural depois usada pela propaganda nazista para argumentar que a vida ali não era assim tão ruim. A história, contudo, demonstra o contrário: vítimas de desnutrição, doenças e de uma insana densidade populacional, 33 mil pessoas morreram dentro de seus muros. Além disso, 88 mil prisioneiros de Terezín foram enviados para o temido campo de Auschwitz, na Polônia, e outros campos de extermínio. Tom e a mãe, Elizabeth, escaparam por pouco. Eles rumavam para Auschwitz, amontoados em vagões de gado, quando o trem teve de interromper o trajeto por falta de trilhos. Assim, foram destinados para Terezín.
Tom chegou lá na véspera de Natal de 1944 e ficou até maio do ano seguinte. Mesmo após a libertação do campo pelo exército soviético, o garoto ficou de quarentena pois havia no local uma epidemia de tifo. Ele diz que os guardas da SS, o temido exército de elite nazista comandado por Heinrich Himmler, não se importavam muito com o que as crianças faziam. Havia poucos homens, e as mulheres – como a mãe dele, com 44 anos à época – trabalhavam forçadamente o dia todo, produzindo roupas e calçados usados na guerra. Venetianer recorda-se dos barracões lotados em que dormiam e diz que as crianças famintas tentavam furtar comida dos alojamentos enquanto os adultos trabalhavam nas fábricas durante o dia.
Antes disso, em meados de 1944, a Cruz Vermelha foi enviada para inspecionar as condições de vida dos habitantes de Terezín. Mais de 450 judeus dinamarqueses haviam sido deportados para lá e o rei do país escandinavo determinou uma vistoria. O comando nazista do campo ergueu uma operação para limpar e esvaziar o local. Café e lojas foram construídos, havia biblioteca, banda de música, e roupas novas foram distribuídas. O cenário farsesco, arquitetado nos mínimos detalhes, convenceu a Cruz Vermelha de que os cativos eram bem tratados e que não havia com o que se preocupar.
Uma das memórias mais marcantes desse período tenebroso para Tom foi uma escolinha de desenho e pintura montada por uma artista plástica tcheco-alemã, onde o garoto talentoso pode se aprimorar. “Não consigo me lembrar do nome dela, mas é certo que deixei desenhos em Terezín”, conta. Outra lembrança que guarda é da caxumba que poderia ter sido mortal devido à falta de remédios e cuidados. Mas o acaso novamente bateu-lhe à porta quando uma colega de trabalho da mãe, que era médica, arriscou a vida e roubou do ambulatório dos oficiais nazistas um medicamento que baixou sua febre.
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Tom recorda-se que a mãe, Elizabeth, trabalhava das 6h às 21h e ele pouco a via. “Sentia-me muito inseguro, era doloroso”. Ele também lembra do sabor do pão amargo e da sopa aguada, algumas vezes incrementada com uma batata ou outro legume podre. “Passávamos fome e nos tornamos esqueletos”, conta, calculando que a dieta diária não chegava a 800 calorias. Ao deixar de vez o campo, com oito anos, Tom pesava 16 quilos.
“Passávamos fome e nos tornamos esqueletos. Sentia-me muito inseguro, era doloroso.”
O frio do rigoroso inverno europeu de 1944 a 1945 também deixou traumas indeléveis. “Até hoje tenho os pés e as mãos frios”, diz Tom, citando a falta de agasalhos e calçados adequados e os glaciais banhos coletivos. As imagens dos russos adentrando os campos de concentração também são nítidas. Ele se lembra das bandeiras flamejando sobre os tanques e de um tablete de chocolate que recebeu de um soldado. “Tinha um gosto horrível, porém, para alguém que jamais comera chocolate, parecia uma iguaria do paraíso.”
Thomas e Elizabeth foram repatriados para Kosice. O acaso, ou a sorte, ou Deus – por que não? – havia acometido também seu pai, Alexandre. Ele estava vivo, tinha 43 anos e pesava 42 quilos. Sobreviveu não apenas a um campo de concentração, mas a uma marcha da morte, onde levou um tiro no ombro, agonizou por três dias ao relento na neve e foi salvo pela Cruz Vermelha. Depois de passar por um hospital polonês, chegou a Kosice três meses após o fim da guerra. A paulada que recebeu no ombro no campo de Sered e o tiro na mesma região do corpo o deixaram inválido. Tom jamais vai se esquecer de uma fala do pai: “Não vou ficar em um lugar onde assassinaram minha família”. Foi o prelúdio da sua vinda ao Brasil.
“Ninguém sabia o que era o Brasil”
Thomas Venetianer conviveu com uma espécie de sentimento de culpa por ter sobrevivido ao Holocausto, carregando o incômodo peso de que praticamente toda a sua família havia sido exterminada pelo regime nazista. “Por que eu sobrevivi?”, pensou incontáveis vezes. Aos poucos, foi percebendo que ele teria uma missão: disseminar sua história e alertar seus ouvintes sobre as ações extremas que os seres humanos podem realizar quando são dominadas pelo ódio. “Hoje eu sei que sobrevivi porque alguém tinha de comprovar que esteve lá e vivenciou as barbáries do nazismo.”
A vinda da família Venetianer para o Brasil também foi cercada de percalços, primordialmente porque os imigrantes judeus não eram bem-vindos naquele momento. Segundo a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, pelo menos 16 mil vistos foram negados pelo governo brasileiro aos judeus durante as administrações dos presidentes Getúlio Vargas (1930-1945) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). As chamadas circulares secretas antissemitas foram enviadas para as embaixadas brasileiras visando dificultar ou mesmo impedir a vinda de refugiados de origem judaica para o Brasil. Os documentos continuaram a ser emitidos mesmo após os governantes terem tomado conhecimento do Holocausto, e continuou no pós-guerra, até 1950.
Ainda no começo da guerra, os Venetianers haviam conseguido documentos falsos que atestavam que eles eram cristãos, obtidos por intermédio de um pastor protestante amigo da família. As certidões, contudo, não foram suficientes para conseguirem vistos para o Brasil. O governo exigia que o patriarca tivesse uma carta convite de alguma empresa brasileira, provando que estaria vindo para o país já empregado. Parentes da mãe de Tom ajudaram o pai a conseguir o documento e eles puderam, finalmente, desembarcar na América do Sul em 1948.
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Criança, em um novo mundo, Thomas Venetianer pode, enfim, recomeçar. “O Brasil era muito diferente quando nós chegamos aqui, recebia o estrangeiro da melhor maneira possível”, opina. Alexandre morreu em 1979 e Elizabeth, em 1986. Tom atingiu posições importantes nas empresas multinacionais em que trabalhou em São Paulo, mas hoje está aposentado. Além de pintar, faz pesquisa sobre a genealogia de sua família e procura manter-se ativo. Ele e Suzana têm dois filhos e cinco netos que visitam os avós constantemente e enchem a casa de alegria. No dia da entrevista, Suzana completava 78 anos. Ela perdeu avós, tios e primos na guerra e veio para o Brasil em 1957. Tom e ela casaram-se em 1963.
Na mesinha de centro da sala de estar do apartamento de Tom, estão livros sobre Segunda Guerra, sobreviventes do nazismo que vieram para o Brasil e dois volumes do livro de história sobre o Holocausto na Eslováquia, escritos por ele em inglês. Tom levou sete anos para finalizar a obra The Holocaust in Slovakia (Lulu Press, 2015-2016), e explica que não é uma biografia, e sim um trabalho acadêmico. Debruçar-se sobre a história do nazismo e do antissemitismo em seu país tornou-lhe um especialista no tema, o que faz com que, mesmo aposentado, ele ministre palestras regularmente.
Além do material sobre o Holocausto, Venetianer escreveu oito livros, dentre os quais um chamado Sucesso pessoal e o segredo dos vencedores. Seria o título uma referência a ele? Sobreviver ao Holocausto é ser um vencedor? Ele diz não saber. “Não acho que faz sentido receber honrarias, fomos vítimas das loucuras genocidas do nazismo”, pontua ele. “Nós, os sobreviventes, tivemos de achar novo sentido para nossas vidas.”