Turismo de caça às bruxas é lucrativo, mas também esconde uma história trágica

A cidade de Salem, em Massachusetts, nos Estados Unidos, equilibra lucros com homenagens. Como outros locais populares por sua história de bruxaria podem fazer o mesmo?

Por Karen Gardiner
Publicado 31 de out. de 2020, 08:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
O Memorial Steineset da Noruega, localizado na costa do mar de Barents, foi construído em homenagem ...

O Memorial Steineset da Noruega, localizado na costa do mar de Barents, foi construído em homenagem às 91 mulheres e homens executados por bruxaria no país no século 17.

Foto de Max Galli, Laif, Redux

SÉCULOS SE PASSARAM desde que o pânico com a bruxaria se instalou na Europa e em partes da América, e as bruxas ainda lançam um feitiço poderoso. A elas, atribuem-se poderes surpreendentes, romantizados e reencarnados na forma de decorações de Dia das Bruxas. São estrelas de cinema, dos palcos e da TV, muitas vezes representadas como sendo “malvadas”, mas às vezes como “boazinhas” e até mesmo adoráveis.

Na verdade, as bruxas e as pessoas acusadas de utilizarem magia são reais. Suas histórias — que foram apropriadas e nem sempre contadas com precisão — geram receitas para lugares associados ao ocultismo, como Salem, em Massachusetts, e Zugarramurdi, a “Salem da Espanha.”

Mas com o aumento da conscientização atual sobre a perseguição de pessoas — principalmente mulheres — acusadas de bruxaria no mundo todo, há uma inquietação crescente sobre como nos lembramos dos homens, mulheres e crianças perdidos para a caça às bruxas em cidades que hoje oferecem turismo. A questão é: como podemos equilibrar homenagem com a monetização da história dessas pessoas? A resposta não é simples.

Estilo bruxa kitsch

Todos os anos, no Dia das Bruxas, imagens de uma bruxa de nariz pontudo com um chapéu comprido aparecem nos Estados Unidos, e Salem provavelmente reúne a maior parte delas.

Nos anos anteriores à pandemia, cerca de um milhão de turistas movimentaram US$ 140 milhões na cidade que hoje é sinônimo dos julgamentos das bruxas de 1692, nos quais 19 pessoas foram executadas por bruxaria. A celebração do Dia das Bruxas, que dura um mês, é a maior atração local, e atrai mais de 30% dos visitantes anuais da cidade. Eles chegam fantasiados, aproveitam para tirar fotos de policiais que exibem insígnias comemorativas com bruxas usando chapéus pontudos e compram copos de shot com temas de Dia das Bruxas.

Moradores fantasiados com trajes de bruxas desfilam em Salem, no “Grande Desfile Anual dos Acontecimentos Assombrados” de Massachusetts em 2018. O desfile é um evento importante na famosa comemoração de Dia das Bruxas da cidade, que dura um mês.

Foto de Joseph Prezioso, AFP/Getty Images

Uma cena semelhante ocorre durante todo o ano em Zugarramurdi, no norte da Espanha, onde sete mil pessoas foram acusadas de bruxaria durante os julgamentos das bruxas bascas no início dos anos de 1600. Os turistas podem conhecer uma caverna próxima, na qual os feiticeiros costumavam brincar com o diabo (disfarçado de cabra), visitar um museu dedicado à história do local e comprar lembranças associadas a bruxas.

Embora o turismo envolvendo bruxas possa ser divertido, alguns estudiosos temem que esses estereótipos sejam mais prejudiciais do que benéficos. A venda de bonecas em lojas de presentes como as da Espanha “perpetua a ideia de que as pessoas consideradas bruxas... não foram vítimas de uma perseguição terrível, mas que se tratavam de figuras fictícias”, explica Silvia Federici, autora do livro Calibã e a Bruxa. “Não acredito que os turistas que compram esses objetos percebam que essas mulheres foram acusadas de crimes que não cometeram e, depois, foram terrivelmente torturadas; na maioria das vezes, queimadas vivas.”

A história se repete

Do fim do século 16 até meados do século 17, o medo da bruxaria se instaurou na Europa, no início da era moderna. Naquela época, disputas de terras, doenças inexplicáveis e suspeitas de mulheres transgressivas ou poderosas figuravam entre as justificativas de acusações de bruxaria. No processo, milhares de pessoas inocentes foram mortas em julgamentos contra o suposto uso de magia negra.

A bruxaria é algo difícil de descrever. A enciclopédia Britannica a categoriza como uma crença religiosa e a define como “o exercício ou invocação de supostos poderes sobrenaturais para controlar pessoas ou circunstâncias, práticas que envolvem feitiçaria ou magia”. Mas a bruxaria abrange uma ampla gama de crenças culturais e regionais, do xamanismo às ideias metafísicas e às tradições folclóricas pré-cristãs que, historicamente, são vistas de forma negativa.

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    Nesta xilogravura, o rei James da Escócia é retratado presidindo o julgamento das Bruxas de North Berwick em 1591, em East Lothian, um condado a cerca de 30 quilômetros de Edimburgo.

    Foto de Chronicle, Alamy Stock Photo

    Centenas de anos depois, ideias equivocadas sobre a bruxaria continuam sendo disseminadas. Como resultado, a caça às bruxas é uma prática do século 21 em muitas partes do mundo, particularmente na África Subsaariana, na Índia e na Papua Nova Guiné.

    Embora as autoridades na maioria dos países simplesmente façam vista grossa, alguns sistemas judiciais sancionam a perseguição. Além de existirem leis contra a feitiçaria na Arábia Saudita (um crime que leva à pena de morte), em 2009 o país criou uma divisão antibruxaria, parte do departamento federal de polícia religiosa.

    O motivo de a caça às bruxas ter aumentado em algumas partes do mundo ainda permanece sem explicação. Além dos mesmos conflitos predominantes no início da Europa moderna, a bruxaria pode ser um disfarce conveniente para o problema crescente da violência de gênero. “A violência contra as mulheres se intensificou muito nos últimos anos”, relata Federici, “creio que, de certa forma, por motivos relacionados com a violência infligida às mulheres durante a caça às bruxas do passado”.

    O não reconhecimento da história da caça às bruxas pode ser outro fator. “Não existe nenhum ‘feriado em homenagem às vítimas’ nos calendários europeus”, escreve Federici na introdução de sua coleção de ensaios de 2018 Mulheres e a Caça às Bruxas. “A história das vítimas não pode “ser enterrada em silêncio se quisermos que o destino delas não se repita, como já vem acontecendo em muitas partes do mundo.”

    Uma homenagem mais apropriada

    No mundo todo, há iniciativas para ir além do uso clichê de bruxas montadas em vassouras e reconhecer de forma realista essa história sombria. Na cidade de Salem, Massachusetts, o memorial “Proctor’s Ledge”, onde os acusados foram enforcados em 1692, possui uma paisagem discreta. Em Essex, na Inglaterra, uma pequena placa lista os nomes das 33 vítimas detidas no Castle Park.

    Na Escócia, uma placa de pedra nas Ilhas Orkney relembra as 80 pessoas mortas em Gallow Ha’. Ao longo do Caminho Costeiro de Fife, três placas listam as 380 pessoas acusadas de bruxaria. Em 2019, também em Fife, funcionários do governo sugeriram que um farol de 200 anos fosse dedicado à vítima mais famosa do condado, Lilias Adie (que morreu na prisão em 1704 enquanto aguardava julgamento), e a todas as vítimas do período de pânico com relação às bruxas do país. No fim das contas, porém, a campanha não obteve sucesso.

    Mas nenhum projeto se equipara à magnitude e ao impacto do Memorial Steilneset, na Noruega. Erguido em 2011, a construção descreve a vida de 77 mulheres e 14 homens executados nos julgamentos de bruxaria de Finnmark, no século 17. Os visitantes encontram o monumento ao fim da Rota Cênica Norueguesa Varanger, à beira do mar de Barents, ao qual as pessoas acusadas de bruxaria eram lançadas. Se boiassem, eram consideradas culpadas.

    O arquiteto Peter Zumthor projetou um longo pavilhão que leva à uma estrutura de aço e vidro fumê. Dentro da estrutura, a escultura “The Damned, The Possessed and The Beloved” (Os amaldiçoados, os possuídos e os amados, em tradução livre), da artista Louise Bourgeois (2007-2010), coloca em destaque uma cadeira de aço em chamas cercada por espelhos.

    O Memorial Steilneset da Noruega foi projetado pela artista Louise Bourgeois e pelo arquiteto Peter Zumthor em memória às vítimas dos julgamentos das bruxas de Finnmark.

    Foto de Max Galli, Laif, Redux

    Ao lado de cada uma das 91 janelas da estrutura de aço do pavilhão (uma para cada vítima), um texto impresso em seda — escrito pela historiadora Liv Helene Willumsen, com base nos autos do tribunal — traz o nome das vítimas, as acusações feitas contra elas e seu veredito. Entre as vítimas nomeadas estão Sámi Karen Edisdatter, a primeira das 13 mulheres culpadas por um naufrágio em 1617, e Marette, conhecida somente como “esposa de Torsten”, que foi queimada na fogueira em 1645 e “deixou apenas um par de calças azuis e um suéter velho”.

    “Eu estava muito ciente do perigo de romantizar os julgamentos de bruxaria”, alega Willumsen. “Procurei tratar o material histórico de forma respeitosa, sem dramatizá-lo. Quero devolver às vítimas sua dignidade, uma dignidade que elas nunca tiveram em vida. Quero mostrar que eram humanos, [cada um] com um nome e uma voz. Que viviam nos vilarejos de Finnmark.”

    ‘Uma difícil relação’

    Steilneset se tornou um modelo a ser seguido pelos ativistas da Escócia, onde a história de perseguição das bruxas é especialmente sombria. Os moradores locais fazem pressão para que haja um reconhecimento mais amplo das atrocidades cometidas no país em um momento em que a América e a Europa são inundadas por protestos contra monumentos que refletem a história de forma incorreta.

    As pessoas se preocupam “em registrar a história corretamente”, ainda mais as “mulheres [que] ainda não desfrutam de igualdade na sociedade”, afirma Claire Mitchell, advogada de defesa criminal que mora em Edimburgo e que iniciou uma campanha a favor do perdão judicial, de um pedido de desculpas e da construção de um monumento com o apoio do parlamento.

    Mas Mitchell reconhece o potencial que um memorial possui de criar uma difícil relação entre homenagear as vítimas e monetizar suas histórias. “O que desejo é que a Escócia não seja apenas uma atração turística, mas que os turistas entendam seu patrimônio e o que aconteceu aqui”, reitera ela, acrescentando que o memorial deve ser “feito da maneira correta”.

    “Não é fácil homenagear uma atrocidade”, escreve a autora vencedora do Prêmio Pulitzer, Stacy Schiff, em seu ensaio First, Kill the Witches. Then, Celebrate Them (Primeiro, mate as bruxas. Depois, homenageie-as, em tradução livre), inspirado na indústria do turismo envolvendo as bruxas de Salem. A respeito do dinheiro injetado na cidade pelo turismo que tem como base seu passado sombrio, ela escreve que “a cidade transformou sua vergonha secreta em sua graça salvadora”.

    Apesar de todo seu estilo bruxa kitsch, Salem é um dos poucos lugares que reconheceu sua história de forma apropriada. Nas décadas que se seguiram aos julgamentos das bruxas, os acusadores pediram desculpas oficiais pelos acontecimentos de 1692. Trezentos anos depois, Salem ergueu um memorial às vítimas e, em 2002, Massachusetts exonerou todos os acusados. O turismo também foi modificado; as bruxas atuais agora conduzem passeios que explicam a verdadeira história e desmistificam os estereótipos.

    Essa contradição é muito familiar para Kristen J. Sollee. Em seu novo livro Witch Hunt (Caça às bruxas, em tradução livre), ela narra a experiência de visitar lugares associados a julgamentos de bruxas e locais de interesse a pessoas que se identificam como bruxas, como ela própria. “Depois de anos de pesquisa”, escreve, ela já possui uma “bagagem extensa sobre o conflito eterno que o turismo envolvendo bruxas incentiva”.

    Um dos capítulos descreve uma visita à Triora, na Itália, onde “o apelo comercial é desanimador, assim como em Salem”. Embora ela tenha achado a cidade “dominada pela questão comercial, ainda assim observou belos rituais e esforços legítimos da comunidade para lembrar a caça às bruxas que ocorreu no local”, relata Sollee. “Então, é como Salem... oscila entre o sombrio e o obsceno.”

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