Morte de anciãos por covid-19 ameaça línguas indígenas do Brasil

“Estamos muito preocupados”, lamenta líder indígena. “Eles têm tanto a contar.”

Por Jill Langlois
fotos de Rafael Vilela
Publicado 18 de nov. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 18 de nov. de 2020, 09:49 BRT
Crianças do povo guarani mbya, como Manuela Vidal, aprendem sobre a língua e a cultura em ...

Crianças do povo guarani mbya, como Manuela Vidal, aprendem sobre a língua e a cultura em escolas públicas, mas a pandemia de Covid-19 obrigou o fechamento das escolas.

Foto de Rafael Vilela

Eliézer Puruborá, um dos últimos indígenas que cresceu falando a língua puruborá, morreu em decorrência da Covid-19 no início deste ano. Sua morte, aos 92 anos, reduziu ainda mais o pouco domínio que seu povo tem da língua.

As línguas indígenas no Brasil estão ameaçadas desde a chegada dos europeus. Apenas cerca de 180 das 1,5 mil línguas que outrora existiram ainda são faladas – a maioria é utilizada por menos de mil pessoas. Alguns grupos indígenas, sobretudo os com populações maiores, como a etnia guarani mbya, conseguiram preservar a língua materna. Mas as línguas de grupos menores, como a dos puruborás, atualmente com apenas 220 indivíduos, estão à beira da extinção.

A pandemia deixa a situação, que já é precária, ainda pior. Estima-se mais de 39 mil casos de coronavírus entre indígenas brasileiros, incluindo seis entre os puruborás, e até 877 mortes. A Covid-19 tira a vida de idosos como Eliézer, que costumam ser os guardiões dos idiomas. O novo coronavírus também força o isolamento dos membros da comunidade, impede os eventos culturais que mantêm as línguas vivas e prejudica o lento progresso da preservação da língua (O coronavírus se aproxima perigosamente dos “indígenas flecheiros”, isolados na Amazônia”).

Para os puruborás, preservar língua e cultura é uma luta de longa data. Há mais de um século, seringueiros atuando com o apoio do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão federal que administrava assuntos indígenas, chegaram às aldeias de Rondônia, na Amazônia. Colocaram homens e meninos indígenas, incluindo Eliézer, para trabalhar na coleta de látex dos seringais e distribuíram mulheres e meninas para seringueiros não indígenas como prêmios. O português era a única língua autorizada nos locais (Mulheres indígenas lutam para não perderem a guarda de seus filhos no Brasil).

“Tudo que fosse relacionado à nossa cultura era proibido”, afirma Hozana Puruborá, que se tornou a líder dos puruborás após a morte de sua mãe, Emília. Emília era prima de Eliézer. Quando crianças, os dois primos, ambos órfãos, cochichavam em puruborá quando não havia ninguém por perto para ouvir. “Mantiveram a língua viva em segredo.”

Em 1949, o SPI declarou que não havia mais indígenas na região porque haviam sido “miscigenados” e “civilizados”. Oficialmente, o povo puruborá havia desaparecido.

O SARS-CoV-2 ameaça a vida de anciãos como Hortencio Karai, com 107 anos, que costumam ser os guardiões da língua de uma cultura. 

Foto de Rafael Vilela

Adolescentes como Richard Wera Mirim, com 17 anos, e seus amigos também se apegam à cultura, conta a líder comunitária Sonia Ara Mirim. “O nhandereko — o modo de vida guarani – vive dentro de nós”, explica ela. “A criança pode passar o dia inteiro no celular, no computador, vendo televisão, mas ninguém tira nosso modo de vida de nós.”

Foto de Rafael Vilela

Arquivo linguístico

No entanto, os puruborás se recusaram a desaparecer. Fundaram Aperoi, a última aldeia dos puruborás, um lote medindo cerca de 25 hectares de terra ancestral que compraram de produtores de soja e pecuaristas. Como não era grande o suficiente para todo o povoado, Eliézer passou a morar perto de lá com a filha na cidade de Guajará Mirim.

Os puruborás também começaram a trabalhar com Ana Vilacy Galucio, linguista do Museu Paraense Emílio Goeldi, que guarda arquivos permanentes de 80 línguas indígenas da Amazônia brasileira. Com a ajuda dos puruborás, ela pretendia criar um arquivo para eles também.

Quando Galucio começou a visitá-los em 2001, havia nove anciãos puruborás, entre eles, Eliézer e Emília, que foram incentivados a falar a língua novamente. Muitos moravam longe de Aperoi e não conversavam em puruborá há décadas.

“Não haviam perdido apenas a capacidade de falar a língua”, conta ela. “Não conseguiam mais entender o que era dito; haviam perdido o contato com o idioma.”

Galucio os reuniu para que conversassem. Utilizaram fones de ouvido e falaram em microfones. Tudo o que disseram foi gravado para criar um arquivo de áudio da língua. No início, só conseguiam se lembrar de algumas palavras. Nomes de animais eram mais fáceis. A maior dificuldade era com a gramática e a estrutura das frases. Mas, quanto mais conversavam uns com os outros, mais recordavam.

Atualmente, restam apenas dois anciãos semifluentes: Paulo Aporete Filho e Nilo Puruborá. Com cerca de 90 anos e com problemas de saúde, ambos são altamente vulneráveis ao SARS-CoV-2. Nenhum dos dois mora em Aperoi e ninguém pode visitá-los devido à pandemia. Hozana teme que morram em decorrência da Covid-19 antes que tenham tempo de compartilhar todo o seu conhecimento.

“O arquivo ainda está muito incompleto”, relata ela. “Estamos muito preocupados. Eles ainda têm muito a compartilhar.”

Ajuda inesperada

Mais ao sul do país, a pandemia também está acometendo o povo guarani mbya. Centenas de pessoas nas seis aldeias que compõem a comunidade em São Paulo contraíram Covid-19, incluindo idosos com mais de 100 anos. Até o momento, ninguém faleceu.

Jovens da aldeia Tekoa Pyau em um campeonato de futebol com uma hora de duração. A terra guarani fica no meio de São Paulo. A cidade – a maior do Brasil – invade cada vez mais sua terra.

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A comunidade comemora um aniversário em Guyra Pepó, aldeia no interior do estado para onde 36 famílias guaranis se mudaram durante a construção de uma rodovia em sua terra, em São Paulo.

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Em junho, jovens guaranis se reuniram para combater um incêndio. “É o nosso trabalho”, afirma o professor Anthony Karai. “Somos os guardiões da floresta.”

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Anthony Karai, 21, teaches Guarani classes online from his home in Tekoa Pyau village. The classes are aimed at non-Indigenous students and are a way for Karai to raise money for his community.

As escolas públicas de ensino fundamental da comunidade, que ensinam a língua e a cultura guarani, foram fechadas, deixando as crianças sem um importante recurso de aprendizagem e compartilhamento. Muitos perderam os empregos.

Mas a língua guarani também recebeu uma ajuda inesperada. Com a chegada da pandemia de Covid-19, Anthony Karai, jovem líder indígena, começou a dar aulas de idiomas pela internet como forma de arrecadar dinheiro para os membros desempregados da comunidade. Ele percebeu que poderia atender até 100 alunos – mais de 300 pessoas se inscreveram em duas horas.

Karai não queria dispensar ninguém, então chamou dois professores de aldeias diferentes para ministrar aulas aos 200 alunos restantes. Ensinar guarani, conta ele, não é apenas uma maneira de manter a língua viva, mas também proporciona aos não indígenas um outro olhar sobre a comunidade.

“Quando alguém aprende uma língua, não aprende apenas a língua”, afirma Karai. “Aprende também a cultura.”

O oposto também é válido: a perda de uma língua também pode significar a perda de uma cultura – é o que preocupa Mario Puruborá, professor de puruborá.

Thiago Karaí Kekupe, jovem cacique guarani mbya, combate um incêndio que a comunidade suspeita ter sido criminoso.

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No início de 2020, centenas de árvores próximas foram derrubadas para construir prédios residenciais. Membros da comunidade guarani protestaram em trajes tradicionais e conseguiram evitar mais destruição.

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Criança guarani nada perto de sua aldeia. “Não temos água potável na aldeia”, lamenta Thiago Karaí Kekupe. “A única água acessível a nós vem de uma nascente de água natural.”

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Sem terra, é difícil manter o idioma e a cultura. Em 2017, famílias guaranis estabeleceram uma nova aldeia no interior do estado de São Paulo.

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Em Aperoi, assim como nas aldeias da etnia guarani mbya, as crianças aprendem puruborá na escola pública. Mas, mesmo antes da pandemia, as autoridades locais queriam fechar a escola porque havia poucos alunos.

Mário, que lutava para manter as aulas, não é fluente em puruborá. Ele aprendeu o que sabe com as gravações de áudio que Galucio fez para o arquivo do museu.

Antes da pandemia de covid-19, ele dependia de visitas regulares aos anciãos que moram fora da aldeia, como Paulo e Nilo, para conseguir respostas às suas dúvidas sobre o idioma. O novo coronavírus tornou essas viagens muito arriscadas e, agora, ele teme que muitos detalhes linguísticos morram com eles.

Os puruborás fazem o possível para manter a segurança dos membros de sua comunidade. Adiaram a assembleia anual e o festival cultural – quando contam histórias, cantam e organizam iniciativas de preservação da língua – e restringiram viagens não essenciais. Afirmam que, quando a pandemia finalmente melhorar, tentarão garantir que a responsabilidade pela preservação da cultura e da língua não recaia exclusivamente sobre os ombros frágeis dos mais velhos.

“Muitos dizem que ressurgimos, mas não gosto desse termo”, afirma Mario. “Sempre conhecemos nossa identidade e sempre estivemos aqui. E sempre estaremos.”

Esta reportagem foi produzida com apoio do Fundo de Emergência Covid-19 para Jornalistas da National Geographic Society
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