
As lições do imperador romano Marco Aurélio: seu diário íntimo traz reflexões filosóficas sobre vida, amor e morte
Busto de Marco Aurélio mais velho em mármore de Carrara.
O mundo do imperador romano Marco Aurélio, no século 2 d.C., estava em frangalhos. Uma grande peste assolava a Europa Ocidental, enquanto ele embarcava em uma longa e sangrenta guerra contra as tribos germânicas ao longo da fronteira do Danúbio. Diante dessas adversidades, juntamente com a velhice e pensamentos sobre a morte, o imperador buscou conforto na filosofia.
Ao longo de sua vida, principalmente em momentos inusitados durante a campanha militar, Marco Aurélio anotou suas lutas pessoais, crenças filosóficas e insights sobre como ser um bom governante e uma pessoa melhor. Dessa expressão sincera de introspecção surgiram 12 livros contemplando a vida e a condição humana. No total, essa coleção é chamada de “Meditações”.
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BARBA BEM FEITA: Esculpida por volta de 139 d.C., quando ele tinha cerca de 18 anos, esta escultura em mármore de Marco Aurélio mostra-o com a barba bem feita, ao contrário de muitas das suas representações mais famosas.
RETRATO IMPERIAL: Uma moeda romana de ouro cunhada em 153-154 retrata o perfil do imperador barbudo Marco Aurélio.
Na Roma Antiga, Marco Aurélio foi um imperador filósofo
Nascido em 121 d.C. em uma família aristocrática de Roma, Marco Aurélio recebeu uma excelente educação em retórica e filosofia. Ele estudou grego e citava livremente Homero e Eurípides. Talvez seja por isso que escreveu “Meditações” em grego, em vez de latim, a língua oficial do Império Romano.
Quando jovem, o futuro imperador também se interessou profundamente pela filosofia, particularmente pelo estoicismo, uma escola de pensamento que floresceu na antiguidade. Um de seus princípios fundamentais enfatiza o desenvolvimento da força interior e a aceitação das coisas além do controle humano. Fundado em Atenas por Zenão de Cítio por volta de 300 a.C., o estoicismo cresceu e se tornou uma das principais filosofias do mundo antigo.
“Nunca considere algo como benéfico se isso o levar a trair uma confiança, perder seu senso de vergonha ou demonstrar ódio, suspeita, má vontade ou hipocrisia. ”
O estoicismo floresceu na Roma Antiga, contando com Cícero entre seus principais estudiosos (e uma boa fonte de informação sobre o estoicismo em Roma). Epicteto, um grego que havia sido escravizado, tornou-se um filósofo estoico altamente influente, estudado por Marco Aurélio. Na verdade, “Meditações” tem algumas semelhanças com a coleção de preceitos morais de Epicteto – chamada “Enchiridion” (palavra derivada do grego antigo), e que ficou conhecido como “Manual de Epicteto”.
Mas a obra de Marco Aurélio acrescenta sua própria voz original à tradição filosófica do estoicismo. Ele gravitou em torno da escola de pensamento e passou a acreditar que a percepção é a base do verdadeiro conhecimento. A felicidade poderia ser encontrada através da prática da virtude e sendo guiado em todos os momentos pela razão diante das vicissitudes da vida.
Acredita-se que Marco Aurélio escreveu “Meditações” como uma forma de introspecção – e não para consumo público em geral. As entradas variam de máximas diretas a dissertações convincentes, e não há uma organização definitiva para a obra – embora alguns padrões tenham sido identificados, com temas organizados em torno da filosofia estoica. No geral, concorda-se que “Meditações” oferece uma visão privada de como era a vida de um indivíduo imperial romano que vivia como estoico.
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O que está na obra de autoconhecimento escrita por Marco Aurélio?
Uma espécie de reflexão abre o diário em que Marco Aurélio agradece a todos aqueles que o influenciaram positivamente ao longo de sua vida. Por exemplo, ele agradece a seus tutores por tê-lo afastado da superstição e dos vícios – e por tê-lo levado a uma vida mais austera e virtuosa. O mais importante desses tutores, ele lembra, foi Quinto Júnio Rústico, que corrigiu seu caráter impetuoso e o apresentou aos filósofos estoicos.
Marco Aurélio escreveu “Meditações” enquanto estava no meio de uma campanha militar. No final do “Livro II”, ele menciona Carnuntum, uma base militar no Danúbio (perto da atual Viena, na Áustria). Outra nota no final do “Livro I” refere-se ao “rio Gran, entre os quados”.
O rio Gran (hoje rio Hron) é um afluente do Danúbio que atravessa a Eslováquia. O fato de Marco Aurélio estar lá mostra que ele não estava satisfeito em dirigir as operações a partir de Carnuntum, mas cruzou o Danúbio para o território bárbaro a fim de liderar na linha de frente. Mas mesmo na linha de frente, ele arranjou tempo para escrever.
“As pessoas existem umas para as outras. Você pode instruí-las ou suportá-las. ”
No texto, Marco Aurélio também relembra sua vida na corte de Roma, para onde chegou aos 17 anos. Seu pai adotivo, o então imperador Antonino Pio, mantinha um estilo de vida modesto, de modo que o jovem Marco Aurélio não foi lançado em um mundo de roupas suntuosas e vida luxuosa; ele nem mesmo tinha guarda pessoal. O futuro imperador admirava a dedicação com que seu pai adotivo administrava o império, além de personalidade paterna, que era calma, mas decisiva.
Marco Aurélio ascendeu ao trono de Roma em 161 d.C., governando em conjunto com seu irmão adotivo Lúcio Vero até a morte deste, em 169 d.C.. Em sua obra, embora Marco Aurélio não reflita diretamente sobre sua vida como imperador, ele aborda temas importantes relacionados a ela, incluindo o peso de suas responsabilidades e a necessidade de defender a justiça.
Ele reconhece que deve tomar decisões no melhor interesse das pessoas que governa e escreve: “Comece cada dia dizendo a si mesmo: hoje encontrarei interferência, ingratidão, insolência, deslealdade, má vontade e egoísmo... Nenhuma dessas coisas pode me prejudicar, pois ninguém pode me implicar no que é degradante”.
Marco Aurélio reconhece que o poder pode ser um fardo e uma tentação, enfatizando a importância de evitar a arrogância e manter a humildade diante da autoridade. Ele também oferece insights sobre como lidar com situações difíceis, manter a tranquilidade interior e permanecer focado em seu propósito diante dos obstáculos.


POMPÉIA E VESÚVIO: A respeito da natureza efêmera da vida, Marco Aurélio menciona em "Meditações" três cidades perdidas: Pompeia e Herculano, ambas soterradas pelo Monte Vesúvio em 79 d.C.; e Helike, na Acaia, Grécia, que foi engolida pelo mar em 373 a.C.
O que “Meditações” revela sobre o lado pessoal do imperador-filósofo?
Entre suas observações mais pessoais estão as coisas que parecem incomodá-lo. Ele reconhece que odeia o que a maioria dos seres humanos parece amar. Os jogos de gladiadores, por exemplo, o repugnavam; o sexo é reduzido a “uma breve convulsão”.
E ele não entendia porque as pessoas ficam impressionadas com as vestes roxas usadas por senadores e imperadores, quando estas são apenas “lã de ovelha tingida com sangue de marisco”.
Em seus textos, Marco Aurélio tenta manter a calma o tempo todo e não se preocupar com o que seu vizinho dirá ou pensará sobre ele. Como ele mesmo lembra: “Isso nunca deixa de me surpreender: todos nós nos amamos mais do que as outras pessoas, mas nos importamos mais com a opinião delas do que com a nossa”. A família, por sua vez, desempenha um papel secundário em seus escritos, embora ele seja extremamente grato à sua esposa – Faustina, a Jovem – filha de Antônio Pio. Ele a descreve como “tão obediente, tão afetuosa e tão simples”.


Outras fontes contemporâneas, porém, não foram tão gentis com Faustina. Historiadores como Cassius Dio a acusaram de cometer adultério com soldados e gladiadores bonitos. Em seus escritos, no entanto, Marco Aurélio só tem boas palavras para ela. Os dois tiveram 13 filhos, mas apenas seis sobreviveram à infância. Quando Faustina morreu, em 175, o imperador lamentou a perda. Ele enterrou sua esposa no Mausoléu de Adriano, em Roma.
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O que Marco Aurélio diz sobre guerra e morte
Escrevendo noite após noite a partir de seu acampamento militar ao longo do Danúbio, Marco Aurélio aborda temas mais sombrios, incluindo a natureza da guerra. Em vários momentos, ele descreve a realidade horrível do combate: “Você já viu uma mão ou um pé decepados, ou uma cabeça decapitada, simplesmente jogados em algum lugar longe do corpo ao qual pertenciam...?”
Mas quando o dia amanhece, essas reflexões desaparecem e a realidade prevalece. O filósofo da noite deve ser um líder militar durante o dia. Ele reconhece que nem sempre é fácil. “Ao amanhecer, quando você tiver dificuldade para sair da cama, diga a si mesmo: ‘Tenho que ir trabalhar — como ser humano’”, mesmo que seja preferível “ficar debaixo das cobertas”.

CINZAS DO IMPERADOR: Após sua morte em 180, Marco Aurélio foi cremado e seus restos mortais foram enterrados no Mausoléu de Adriano, em Roma.

OS ÚLTIMOS MOMENTOS: Em seu leito de morte, um enfermo Marco Aurélio segura o braço de seu filho e sucessor Cômodo nesta pintura a óleo de 1844 intitulada “As últimas palavras de Marco Aurélio”, de Eugène Delacroix.
Há reflexões sobre grandes generais do passado, como Alexandre, o Grande, César e Pompeu, e como – apesar de seus triunfos retumbantes – “eles também partiram desta vida”. Também são mencionados os habitantes anônimos de Pompéia e Herculano, que sufocaram sob as cinzas do Monte Vesúvio.
Ao longo de “Meditações”, Marco Aurélio reitera, quase obsessivamente, a ideia de que todos compartilham o mesmo destino nesta curta vida: a morte. “A vida humana é breve e trivial”, escreve ele. “Ontem, uma gota de sêmen; amanhã, fluido de embalsamamento, cinzas.”
“A vida é curta. Não há mais nada a dizer. Aproveite o presente ao máximo — cada um de nós vive apenas agora, neste breve instante.”
Em busca da paz de espírito
Acima de tudo, a maior busca do imperador é encontrar paz de espírito, enquanto ele reflete sobre a rapidez com que a vida passa: “A existência flui por nós como um rio: o ‘o quê’ está em constante mudança, o ‘porquê’ tem mil variações”. À luz dessa transitoriedade, ele afirma que o melhor caminho é “fazer tudo como se fosse a última coisa que você estivesse fazendo na vida”.
No entanto, a morte oferece a Marco Aurélio uma espécie de libertação, uma chance de se desligar de um mundo onde muitos ignoram os únicos valores que ele reconhece — os da virtude racional e do bem moral. O verdadeiro drama do filósofo-imperador é que ele tenta amar seus semelhantes: “As coisas que lhe foram destinadas — ensine a si mesmo a estar em paz com elas. E as pessoas que as compartilham com você — trate-as com amor. Com amor verdadeiro”.
“Basta prestar atenção e decidir viver de acordo com suas próprias expectativas. ”
Tudo isso Marco Aurélio diz a si mesmo sem angústia ou desespero. Até mesmo a morte deve ser aceita com gratidão, fala ele: “Não despreze a morte, mas receba-a de braços abertos.” A morte faz parte do esquema natural das coisas, ele reflete, comparando-a com “uma azeitona que amadurece e cai. / Louvando sua mãe, agradecendo à árvore em que cresceu.” Ele diz para aceitar a morte “com alegria e verdade, agradecendo aos deuses do fundo do seu coração.”
Quando Marco Aurélio morreu em 17 de março de 180, aos 58 anos e vítima da peste, ele deixou uma marca indelével. Seus escritos intrigaram chefes de estado, desde Frederico, o Grande, da Prússia, até Wen Jiabao, primeiro-ministro da China, que entre 2003 e 2013 afirmou ter lido Meditações mais de cem vezes, a obra se tornou um dos clássicos gregos mais publicados do país. Leitores de todo o mundo têm como tradição anual revisitar o texto e relembrar as lições nele contidas.