Na foto, a famosa múmia do rei Tutancâmon, o antigo poderoso rei egípcio.

É possível mumificar um ser humano moderno usando as técnicas do Egito Antigo?

Em um trecho de seu novo livro, o escritor Sam Kean explora uma experiência estranha e ousada realizada nos anos 1990 para replicar técnicas antigas para transformar o corpo de uma pessoa morta em uma múmia.

Na foto, a famosa múmia do rei Tutancâmon, o antigo poderoso rei egípcio. 

Foto de Kenneth Garrett, National Geographic Image Collection
Por Sam Kean
Publicado 26 de nov. de 2025, 07:09 BRT

Ao longo da história, várias culturas mumificavam seus mortos, e algumas ainda o fazem hoje, mas as múmias egípcias continuam sendo as mais emblemáticas. Infelizmente, os egípcios não deixaram praticamente nenhum registro escrito sobre seu processo de embalsamamento. 

Isso deixa a arqueologia experimental como uma das poucas vias disponíveis para compreender a mumificação, e vários profissionais realmente recriaram múmias nos tempos modernos. Na maioria dos casos, eles trabalham usualmente com animais, mas algumas almas intrépidas e ousadas mumificaram seres humanos, sendo o caso mais famoso o de Bob Brier e Ronn Wade, ocorrido em 1994.

Wade cresceu querendo ser agente funerário como seu pai. Após uma temporada como médico na Guerra do Vietnã, ele se tornou anatomista e, por fim, chefe do conselho estadual de anatomia de Maryland, nos Estados Unidos. Brier também tem formação em anatomia, mas é egiptólogo por formação e paixão. Ele acumulou tantos livros sobre o Egito ao longo de sua vida que aluga um segundo apartamento apenas para acomodá-los.

Brier e Wade selecionaram sua múmia entre as pessoas de Baltimore que doaram seus corpos para a ciência. Por fim, eles escolheram um homem caucasiano de 76 anos que morreu de ataque cardíaco. Sua identidade permanece em segredo, mas, de forma um pouco grosseira, Wade o apelidou de E. M. Balm.

Por uma questão de autenticidade, Brier e Wade utilizaram réplicas de ferramentas e materiais da era faraônica, incluindo envoltórios de linho, uma mesa de embalsamamento de madeira estranhamente larga e lâminas de cobre e obsidiana — embora tenham rapidamente abandonado as de cobre, que não cortavam bem a carne. Antes de começarem a trabalhar na múmia, eles praticaram um passo importante em outros cadáveres: a extração do cérebro

Em vez de usar cadáveres inteiros para isso, eles obtiveram algumas cabeças decapitadas que sobraram de uma aula de cirurgia plástica de uma faculdade de medicina. “Elas pareciam um pouco estranhas”, lembra Brier. “Tinham passado por lifting facial e coisas do tipo.” A partir de algumas referências escassas, Brier sabia que os embalsamadores egípcios removiam o cérebro inserindo uma haste em forma de gancho pelas narinas, mas os detalhes eram vagos. 

Brier e Wade primeiro tentaram retirar o cérebro com essa haste, mas o tecido era muito mole e não saía. Eles finalmente começaram a esguichar água no nariz do cadáver e, em seguida, usaram a haste para bater o cérebro até virar uma pasta. Depois disso, ele saiu facilmente. “Como um milkshake”, comenta Brier. “Um milkshake de morango, para ser mais exato.”

Com as habilidades aprimoradas, a dupla começou a fazer sua múmia em maio de 1994. O primeiro passo envolveu a remoção dos órgãos.

O corpo nos estágios iniciais do processo de mumificação, no projeto da dupla Brier e Wade ...

O corpo nos estágios iniciais do processo de mumificação, no projeto da dupla Brier e Wade em 1994.

Foto de Pat Remler

Manipulação dos órgãos internos para a mumificação


Diferentes órgãos tiveram destinos diferentes no Egito. Sem saber ao certo qual era a finalidade do cérebro, os embalsamadores da época costumavam jogá-lo fora. O coração, por outro lado, era deixado no lugar, pois era considerado então “a sede de todo o pensamento, emoção e inteligência”. Os órgãos abdominais eram cuidadosamente extraídos e preservados

Seguindo esse protocolo, Brier e Wade fizeram uma incisão de 8,9 cm no abdômen do cadáver e removeram o baço, o fígado, a vesícula biliar, os pulmões e 6,7 metros de intestinos. Dado o seu tamanho, a extração do fígado e dos pulmões exigiu alguma geometria criativa e uma compressão determinada. A parte mais difícil envolveu separar os pulmões do coração enquanto trabalhavam às cegas dentro de um buraco tão pequeno.

Com os órgãos removidos, a dupla limpou o abdômen com vinho de palma e mirra, depois encheu o crânio com incenso. Esse era um passo ritual antigo que os egípcios consideravam importante para preparar o corpo para a vida após a morte e também ajudava a matar micróbios e mascarar maus odores. 

Os embalsamadores antigos também usavam outras substâncias sagradas, muitas vezes importadas da Europa e da Ásia a um custo elevado — resina de pistachecera de abelha e óleo de rícino. A múmia de Ramsés, o Grande, tinha grãos de pimenta da Índia enfiados no nariz.

Em seguida, Brier e Wade desidrataram o corpo usando natrão, um mineral composto por partes iguais de sal e bicarbonato de sódio que se forma naturalmente nos wadis egípcios, ou ravinas secas. Como uma esponja, o natrão suga a umidade da carne, deixando-a seca demais para abrigar bactérias, larvas, besouros e outros agentes de putrefação; o tecido restante fica essencialmente seco. 

Totalmente comprometido com a autenticidade, Brier cavou o natrão ele mesmo no Egito e lembra que contrabandear centenas de quilos de pó branco não identificado pela alfândega do aeroporto JFK, em Nova York, foi um dos aspectos mais delicados do projeto. Felizmente, ele estava viajando com uma equipe de filmagem e pôde esconder o pó nas malas, entre os equipamentos. 

Em seu laboratório, Brier e Wade colocaram o baço, os pulmões, o fígado e os intestinos da múmia em tigelas e os cobriram com o natrão. Eles também colocaram 29 sacos de linho com o pó no torso vazio do corpo, colocaram o corpo em cima de mais 211 Kg e despejaram 583 Kg adicionais sobre ele. Eles mantiveram o corpo no antigo escritório de Wade, com o aquecimento ajustado para 40°Cdesumidificadores funcionando dia e noite para simular o ar quente e seco egípcio.

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    Bob Brier construindo a palete que foi usada para a etapa de desidratação do processo de mumificação.

    Foto de Pat Remler
    Natrão, um mineral natural composto por sal e bicarbonato de sódio, foi colocado sobre a mesa ...

    Natrão, um mineral natural composto por sal e bicarbonato de sódio, foi colocado sobre a mesa antes de o corpo ser colocado sobre ela.

    Foto de Pat Remler
    O corpo foi então coberto com mais natrão e deixado para desidratar.

    O corpo foi então coberto com mais natrão e deixado para desidratar.

    Foto de Pat Remler

    A evolução do processo de mumificação de um homem moderno


    Nas cinco semanas seguintes, o natrão na parte superior ficou crocante e marrom por absorver os fluidos corporais, forçando Brier e Wade a quebrá-lo com uma barra de ferro. Hoje, Brier lembra-se do odor como acre, mas não desagradável, embora as notícias da época digam que ele e Wade usaram máscaras cirúrgicas para se proteger do cheiro. Independentemente disso, a visão do corpo abaixo emocionou Brier

    À medida que seca, a pele das múmias se contrai e enruga, especialmente no rosto e no couro cabeludo. Os lábios se retraemrevelando os dentes, e a pele com menos melanina fica marrom-amarelada. Brier sempre se perguntou se essas mudanças eram resultado do processo imediato de mumificação ou de vários milhares de anos de exposição ao clima árido do Egito. 

    Com uma olhada em sua múmia, Brier soube a resposta: mesmo depois de só cinco semanas, “ele parecia Ramsés, o Grande”, lembra ele, com pele enrugada, nariz adunco e cabelos finos e arrepiados. O processo de embalsamamento, e não o tempo, criou as múmias icônicas que conhecemos hoje. Além de alterar a aparência do corpo, o processo de desidratação deixou os membros rígidos como galhos de árvores e reduziu seu peso de 85 kg para apenas 36 kg – sendo que 15 Kg desse peso representavam a remoção de órgãos. 

    Os órgãos secando nas tigelas também murcharam, o que ajudou a explicar outro mistério da mumificação egípcia: como outros arqueólogos observaram, os embalsamadores normalmente colocavam os órgãos nos chamados vasos canópicos, vasos funerários com gargalos estreitos — tão estreitos que parecia impossível encaixar os órgãos maiores neles.

    Depois de removê-lo do natrão, Brier e Wade fizeram uma massagem corporal completa no Sr. Balm com óleos de lótus, cedro e palma, outra etapa que, embora importante ritualisticamente, também tinha benefícios pragmáticos — restaurar a flexibilidade das articulações, tornando a múmia mais fácil de manusear. 

    Feito isso, eles envolveram o corpo em bandagens de linho. (Os embalsamadores na antiguidade começavam pelas mãos e pelos pés, envolvendo cada dedo separadamente, e depois passavam para os braços, as pernas e o tronco. O pênis também era envolvido individualmente — ou, se estivesse enrugado de forma embaraçosa, era preso com uma peça de linho rígido. 

    Nesse ponto, eles deixaram a múmia secar por mais três meses no escritório árido, o que reduziu seu peso para 23 kg. Depois, eles adicionaram várias outras camadas de envoltórios. Entre as camadas, eles colocaram amuletos mágicos e pedaços de papiro com feitiços, uma prática comum na antiguidade.

    Nas últimas três décadas, a múmia da dupla ficou em um caixão de metal em Maryland, armazenada em temperatura ambiente. Brier e Wade a desembrulharam parcialmente duas vezes para verificar se havia apodrecimento, mas não encontraram nada de errado. “Ele está morto e bem”, afirma Brier.

     Bob Brier e Rob Wade envolveram o corpo em várias camadas de ligaduras de linho.

     Bob Brier e Rob Wade envolveram o corpo em várias camadas de ligaduras de linho.

    Foto de Pat Remler

    Entre os arqueólogos, a experiência de Brier e Wade foi controversa. Um crítico indignou-se: “É macabro e de mau gosto, e não acho que tenha grande valor científico.” De forma menos emocional, outro apontou que doar o corpo à Ciência não deve ser um cheque em branco para qualquer tipo de experiência” que os pesquisadores possam imaginar. É um argumento válido. 

    Brier e Wade, no entanto, negam qualquer insinuação de que tenham maltratado o corpo: “Estamos tratando este homem como um rei”, disse Wade na época. Brier acrescenta: “Daqui a cinquenta anos, ele estará em muito melhor forma do que eu”. Além disso, não é verdade que a experiência carecesse de valor científico. Ela revelou muito sobre a mumificação egípcia que simplesmente não sabíamos antes — quais lâminas os embalsamadores usavam, como remover o cérebro, quanto de natrão era necessário e até mesmo por que as mesas de embalsamamento eram tão largas naquela época, com mais de um metro — para acomodar a enorme pilha de natrão necessária para secar a carne. 

    Dada toda a controvérsiapoucos arqueólogos modernos se atreveram a embalsamar seres humanos, mas vários mumificaram animais, uma prática comum no antigo Egito. Para ter alguma experiência prática nessa área, decido procurar a orientação da maior especialista mundial em múmias de animaisSalima Ikram, egiptóloga da Universidade Americana do Cairo, Egito. Ela sugere que eu mumifique um peixe, então eu comprei um pargo vermelho de meio quilo no supermercado, com a cabeça, a cauda e os olhos intactos. 

    Começo fazendo um natrão caseiro, misturando seis xícaras de bicarbonato de sódio e sal com algumas xícaras de água. Seco a pasta resultante no forno até que fique parecida com giz e, em seguida, esfarelo-a até virar pó. Em seguida, lavo o peixe por dentro e por fora com vinho branco, que espuma enquanto esfrego cada recanto, inclusive debaixo da língua. Depois de secar tudo, encho o interior com pequenos saquinhos de linho com natrão, coloco-o sobre uma camada de mais natrão em uma caçarola e coloco mais alguns quilos por cima.

    De forma alarmante, sinto um cheiro estranho através do natrão no dia seguinte. Mas não é um cheiro rançoso, é mais parecido com peixe cozido. Seis dias depois, quando desenterro o pargo para verificar, tenho outro susto: pequenas manchas pretas no pó. São insetos? Tecido putrefato? Não sei, mas a carne não mostra sinais de apodrecimento; parece uma truta defumada, bronzeada e rígida. Considerando que ficou sem refrigeração por quase uma semana durante o verão abafado de Washington, DC, está em ótimo estado.

    Após 18 dias, o pargo está com metade do peso original. Seguindo o protocolo de Ikram, massageio a carne com óleos de rícino, alface e mirra para restaurar a flexibilidade. Os óleos deixam o peixe com uma atraente cor dourada, mas fazem pouco em termos de flexibilidade: quando tento dobrar o corpo, estremeço ao ouvir a pele e os músculos estalarem; várias rasuras aparecem. Talvez eu tenha secado o peixe por muito tempo, ou talvez a carne de mamíferos absorva óleo mais facilmente.

    No entanto, o processo me impressiona no geral. Depois de embrulhar meu peixe mumificado em linho, coloco-o na minha prateleira, e ele ainda está lá até hoje. Da última vez que verifiquei, os olhos e a pele estavam intactos e não havia sinais de decomposição ou odores desagradáveis. Foi surpreendentemente fácil, então, transformar até mesmo um peixe — um animal proverbial por seu cheiro horrível — em uma relíquia inofensiva. Não é de se admirar que os egípcios considerassem a mumificação um processo sagrado, até mesmo mágico.

    Sam Kean é autor best-seller do New York Times dos livros “The Icepick Surgeon”, “The Bastard Brigade”, “Caesar's Last Breath” ( que foi eleito o Livro de Ciência do Ano pelo jornal britânico The Guardian), e seu mais recente trabalho, o “Dinner with King Tut”. Ele também foi duas vezes finalista do Prêmio PEN / E. O. Wilson de Literatura Científica. Seu trabalho já foi publicado em The Best American Science and Nature Writing, The New Yorker, The Atlantic e The New York Times Magazine, entre outras publicações. Kean mora em Washington, DC.

     

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