Carlos Rittl: caneta que assinou acordos na COP26 também liberou 'boiada'
Cético sobre os novos compromissos globais do governo federal, pesquisador brasileiro analisa o saldo da última conferência do clima em entrevista exclusiva.
26o reunião da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima aconteceu no começo de novembro em Glasgow, Escócia, e obrigou o governo brasileiro a assumir compromissos como zerar desmatamento. Mas o pesquisador brasileiro Carlos Rittl é cético sobre avanços na atual gestão.
Como garantir que os países que aderiram ao acordo de zerar o desmatamento até 2030, de fato, cumpririam a promessa? A questão foi posta ao primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, na COP26, durante o anúncio do primeiro compromisso assinado na conferência de Glasgow, na Escócia. Johnson considerou que a pressão de investidores, em tese preocupados com a agenda climática e a preservação dos biomas, seria suficiente.
Menos de um mês após a COP26, a Europa já debate mecanismos de assegurar importações livres da destruição das florestas e de ameaças aos povos originários, sobretudo na Amazônia. Uma proposta da Comissão Europeia propõe proibir a importação de soja, carne bovina, óleo de palma, madeira, cacau e café, de produções ligadas ao desmatamento.
Já o embaixador da Alemanha no Brasil, Heiko Thoms, disse ao jornal O Globo que o novo governo, de Olaf Scholz, seria mais rígido na cobrança contra o desmatamento. Nos últimos três anos, a Amazônia Legal perdeu mais de 30 mil km2. Enquanto o Governo Federal prometeu zerar o desmatamento ilegal até 2028, o ritmo acelerado de devastação pode comprometer as exportações brasileiras.
Desde março de 2020, Carlos Rittl vive na Alemanha, onde é pesquisador sênior do Instituto para Estudos Avançados de Sustentabilidade de Potsdam e acompanha as negociações do acordo entre Mercosul e União Europeia, sob a perspectiva ambiental e climática. Na COP26, Carlos Rittl dedicou-se aos corredores dos pavilhões da conferência de Glasgow, na Escócia, como observador pela Rainforest Foundation, da Noruega, da qual é especialista em políticas públicas. O cientista brasileiro, que foi secretário-executivo do Observatório do Clima de 2013 a 2020, já participou de 13 Conferências das Partes, destinadas a discutir e definir objetivos para combater a crise climática.
Carlos Rittl discursa na tribuna do Senado durante sessão especial para celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente em 9 de junho de 2019. Ex-secretário executivo do Observatório do Clima, Rittl vive hoje na Alemanha, onde é pesquisador sênior do Instituto para Estudos Avançados de Sustentabilidade de Potsdam.
Na Escócia, Rittl passou os dias imerso em conversas com os mais variados atores – representantes de governos, da sociedade civil, da academia, de movimentos sociais, indígenas, juventude – para entender a percepção sobre as negociações climáticas e a postura do Brasil na conferência. Além disso, discursou no evento “Vozes para a Amazônia”, organizado pela Global Canopy, que contou com lideranças indígenas como Juma Xipaia e Sônia Guajajara. Também mergulhou nos bastidores das negociações e nas diferentes versões dos textos das decisões do que viria a ser, ao final da convenção, o Pacto Climático de Glasgow.
“A presença de tantos chefes de estado não é comum para uma COP. Teve mais de 120 nos dois primeiros dias de conferência, por causa desses grandes acordos. Tem a ver com o peso da volta dos Estados Unidos e com a expectativa de recursos anunciados”, destacou Rittl. “A sociedade civil tem um papel de assegurar que aquele processo entregue resultado e que os países cumpram aquilo que se comprometeram. Esse registro oficial de organizações observadoras é para que o processo tenha a voz da comunidade internacional; para que a pressão das pessoas, do cidadão, seja ouvida no processo.”
Carlos Rittl conversou com a National Geographic no final da primeira semana da COP26 e dias após seu encerramento, para avaliar os resultados de Glasgow, a pressão da sociedade civil e a atuação do governo brasileiro.
Kevin Damasio, National Geographic: Como avalia os desfechos da COP26, com o Pacto Climático de Glasgow?
Carlos Rittl: O Pacto Climático de Glasgow fecha algumas pendências importantes que se arrastavam desde a COP24, na Polônia: as regras sobre os mecanismos de cooperação – dois deles de mercado, que visam o apoio aos países em desenvolvimento para implementar ações, como expansão das energias renováveis, promoção do desenvolvimento sustentável e apoio às estratégias de adaptação; e o de transparência, para assegurar o progresso dos países na implementação das ações de forma clara, com plena possibilidade de compreensão e total transparência para a comunidade internacional.
Além disso, foram acordadas regras sobre os prazos de implementação comuns. Em 2015, quando apresentaram as primeiras intenções do que viria ser o Acordo de Paris, alguns países apresentaram metas para 2025, outros para 2030. Para avaliar melhor o impacto do esforço coletivo, é preciso que as metas dos países sejam comuns. A decisão de Glasgow também colocou nos trilhos as regras para que, a partir de 2030, os ciclos e as metas sejam de cinco anos. Com a urgência que temos para reduzir emissões, não podemos ficar com ciclos de tão longo prazo. E é ruim que a decisão tenha permitido que, nesse primeiro ciclo, alguns países permaneçam com metas para até 2030, sem um marco intermediário em 2025. É muito tempo para esperar pelo aumento do nível de ambição das metas atuais. Precisamos cortar de 45% a 50% das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) nessa década, para salvar o objetivo de limitar o aquecimento global em 1,5ºC. E esse prazo largo não é bom.
Há lacunas nas decisões sobre os chamados "Mecanismos de Mercado”. Projetos de redução de emissões de GEE antigos, realizados a partir de 2013, podem ser transformados em créditos, por um dos novos mecanismos do Acordo de Paris, e adquiridos por países que querem dizer que estão cumprindo a sua meta. As reduções antigas não têm efeito adicional para a atmosfera de agora. Então, dizer que está cumprindo a meta, com reduções de antes de 2020, é atrasar o corte conforme o recomendado pela ciência.
Além disso, teve elementos que ficaram de fora. Os países desenvolvidos se comprometeram a botar na mesa 100 bilhões de dólares por ano a partir de 2020. Em 2015, o Acordo de Paris estendeu esse compromisso até 2025. No final de 2021, a decisão da COP de Glasgow reconhece, "com profundo pesar”, que os países não atingiram esse objetivo e os conclama a fazerem até 2025. É um absurdo sair de Glasgow sem a certeza desses recursos. Boa parte dos países em desenvolvimento, especialmente os mais pobres, tem metas de clima condicionadas à existência de apoio externo, que viria desses 100 bilhões. Não significa que não haja nada de financiamento climático hoje, mas tem bem menos. As estimativas variam entre 40 e 60 bilhões de dólares. Tem uma lacuna enorme de recursos que, com regras claras para acesso, deveriam estar à disposição dos países, para começarem a desenvolver e implementar políticas e ações de redução de emissões, além de medidas de adaptação às mudanças climáticas.
Outro ponto importante era a expectativa de um instrumento concreto para apoiar os países que já sofrem com as chamadas “Perdas e Danos”, os impactos das mudanças climáticas presentes hoje, como os eventos climáticos extremos. Glasgow não resolveu isso. O texto ficou muito genérico e arrastou para os próximos anos. Essas pessoas que vivem em comunidades muito vulneráveis, geralmente em países pobres, não têm qualquer responsabilidade sobre o problema que torna sua vida cada vez mais difícil.
K.D.: O Brasil, como quinto maior emissor do mundo, teria direito a uma parcela desse fundo de 100 bilhões de dólares?
C.R.: No Acordo de Paris, muitos países se comprometeram a atingir determinado limite ou redução de emissões se houvesse financiamento, transferência de tecnologia, capacitação. Quando apresentou sua primeira NDC (contribuição nacionalmente determinada), o Brasil disse que cumpriria seus compromissos sem precisar de recurso externo. Se vierem recursos, por exemplo, por mecanismos de apoio à redução do desmatamento, seriam bem-vindos.
O Brasil não precisou acessar recursos internacionais para reduzir o desmatamento na Amazônia em mais de 50% entre 2004 e 2010, com muita ação de comando e controle, criação de unidades de conservação, demarcação de territórios indígenas. Foi só em 2009 que assinou o primeiro contrato com a Noruega, para receber recursos do Fundo Amazônia. Ali, já estava demonstrando resultados, então era uma maneira de reconhecer um esforço que não precisou de recurso externo e apoiar mais ações, para que haja um círculo virtuoso. O discurso desses últimos anos tem sido de chantagem. “Se me derem recursos, eu protejo florestas.” Isso está na NDC atualizada do Brasil, com expectativa de receber 10 bilhões inclusive para combater o desmatamento.
Os 19 bilhões de dólares do fundo para o combate ao desmatamento e restauração florestal têm que ser acessados só por quem demonstra ambição, compromisso e boas políticas, governança, transparência na sua gestão ambiental, sem retrocessos ambientais. E, acima de tudo, quem já está reduzindo o desmatamento em escala. Grandes quantias nas mãos erradas não vão proteger floresta, mas gerar mais destruição.
“A mesma caneta que assinou esses papéis fez passar toda a boiada, enfraquecendo ou extinguindo regras ambientais. ”
K.D.: O pacto e os acordos firmados, se cumpridos, têm potencial para colocar o planeta na trajetória dos 1,5ºC?
C.R.: No G7, todos os países desenvolvidos, ricos, avançaram com metas um pouco mais ambiciosas ao longo deste ano, como Estados Unidos, Alemanha, União Europeia, Reino Unido, Japão, Canadá. Se somar isso aos compromissos de atingir a neutralidade de carbono até meados deste século, e tudo for implementado, análises mais robustas, como do Climate Action Tracker, dizem que chegaria até 2100 com o aquecimento global limitado a 1,8ºC, já dentro do escopo do Acordo de Paris. O problema é que esses compromissos não têm correspondência nas políticas e ações atuais de cada país. Caminhamos até o final do século para um aquecimento global da ordem de 2,7ºC. Então, tem uma distância muito grande ainda entre esses novos anúncios e a meta de 1,5ºC. A diferença de 1,8ºC para 1,5ºC já é bastante significativa. Por enquanto, 1,5ºC continua no papel.
K.D.: Os representantes da sociedade civil estavam em peso em Glasgow para pressionar por justiça climática. Na sua visão, o Pacto de Glasgow e os outros acordos firmados contemplam esse objetivo?
C.R.: Teve uma presença forte da, talvez, maior delegação indígena da história brasileira nas COPs, do movimento negro, da juventude. As suas vozes tiveram eco em eventos, comunicando-se com governos, representantes da sociedade civil, negociadores e imprensa. As vozes chegaram mais longe, estão soando mais alto nas ruas e no ambiente da COP. Mas existe um abismo entre as demandas e as expectativas desses grupos e aquilo que a COP entregou de resultados. Por exemplo, o movimento negro falou muito sobre justiça climática. Mas nos resultados da COP faltou uma resposta concreta às comunidades que hoje mais sofrem com os impactos no mundo inteiro, com a presença das mudanças climáticas – furacões mais fortes, ondas de calor cada vez mais intensas, secas muito severas e toda sorte de eventos extremos, que atingem a cada ano centenas de milhares, às vezes milhões de pessoas.
K.D.: Como você observa a atuação da delegação oficial do governo brasileiro em Glasgow?
C.R.: Quando se fala da delegação oficial do governo brasileiro na COP, temos que separar em pelo menos dois grupos. Primeiro são os negociadores que se sentam à mesa e, como o Brasil é parte do Acordo de Paris, estabelecem um diálogo técnico e jurídico. Não existe uma contaminação da agenda doméstica para quem está negociando o conjunto de decisões debaixo do guarda-chuva do Acordo de Paris ou da convenção. O Itamaraty tem profissionais muito capacitados, experientes, de ótima formação. O único aspecto em que o Brasil vinha bloqueando o progresso nos últimos anos era o Artigo 6 [que trata do mercado de carbono]. Finalmente, os negociadores se dispuseram a chegar a consensos. Seria muito difícil segurar isso pela terceira COP seguida e fechar o livro de regras do Acordo de Paris. Todos os outros países queriam essas regras finalizadas, então, se o Brasil tentasse dificultar esse processo durante a COP26, provavelmente seria atropelado. Haveria uma pressão tão forte que não conseguiria manter seu posicionamento e seria vencido pelo processo.
O outro Brasil é a delegação oficial [ligada ao Governo Federal], que chegou lá com uma estratégia de comunicação, uma intenção de tentar mostrar uma imagem diferente, de um país comprometido com a agenda verde, um país dos sonhos da agenda de clima global. Tem o agronegócio mais sustentável do planeta, a matriz elétrica mais verde do planeta. O futuro do emprego verde está ali. Comprometeu-se a eliminar o desmatamento ilegal até 2028. Assinou uma série de declarações, como a da eliminação do desmatamento global até 2030 e do corte de emissões de metano. Enfim, tentou convencer o mundo de que não é esse pária global que ficou conhecido ao longo desses últimos três anos. Esse Brasil teve pouco sucesso. A presença forte da sociedade civil, de organizações indígenas, do movimento negro e da juventude brasileira fez um contraponto fortíssimo a essa narrativa de que tudo vai bem no Brasil. O Brasil saiu de lá como chegou.
No dia anterior ao fechamento da negociação, saíram os números atualizados do Inpe, do sistema de alerta desmatamento (Deter), mostrando que outubro foi o pior já registrado desde 2015. O desmatamento continua em alta. A realidade dos números, com os satélites mostrando de fato o que está acontecendo, os indígenas denunciando a explosão de violência contra os povos e seus territórios, os casos de invasões em seus territórios por grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais, ou pela mineração em larga escala feita de forma totalmente criminosa. Isso repercutiu muito.
Talvez a diferença mais marcante seja que não tinha um ministro de Meio Ambiente histriônico, buscando os holofotes e causando problemas nos corredores da COP. O ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, é um pouco mais discreto, mas sua agenda é a mesma do ex-ministro Ricardo Salles, que é a mesma do governo Bolsonaro. Quando questionado a respeito dos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, sempre fugia de respostas claras sobre se o governo era ou não a favor de reduzir governança ambiental, de expor ainda mais os territórios indígenas a invasões e legalizar aquilo que hoje é considerado ilegal.
K.D.: Qual é a imagem com que o Brasil chegou para a COP26?
C.R.: O Brasil chegou com uma bagagem pesada. Foram mais de 30 mil km2 de desmatamento em três anos consecutivos – uma área do tamanho da Bélgica perdida num curto espaço de tempo. Mesmo na recessão econômica do ano passado, as emissões brasileiras subiram em função do desmatamento na Amazônia. Na sua bagagem indesejada, estava também o aumento da violência contra povos indígenas. Um relatório do Conselho Indigenista Missionário mostra que em 2020 houve um aumento de 61% de indígenas assassinados, além de invasões de terras indígenas (TI), destruição de patrimônio das comunidades e predação de recursos, pela mineração e exploração ilegal de madeira nas TIs.
O governo levou também uma agenda contrária ao meio ambiente, ilustrada pelos projetos de lei que enviou para o Congresso Nacional. Entre eles, o que visa legalizar a grilagem de terra em grandes latifúndios. Não para proteger posseiros em pequenas comunidades, mas para beneficiar quem invade terra pública também com muito dinheiro. São milícias que visam se aproveitar de um mercado que pode ser legalizado, com áreas entre 600 e 1,5 mil hectares.
O governo brasileiro tem tentado enfraquecer os processos de licenciamento ambiental. O mundo está acompanhando isso. Sessões no Parlamento Europeu discutiram a lei de grilagem, violações de direitos de povos indígenas. Nunca se falou tanto no mundo sobre meio ambiente como nos três últimos anos – e sobre o Brasil e a Amazônia, infelizmente pelas piores razões.
E é aquele país que está tentando se mostrar diferente na narrativa, que veio dizendo, nesses últimos meses, que tudo não passava de problema de comunicação. O próprio presidente, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, no seu discurso de abertura da sessão de debates gerais, disse: “Estou aqui para mostrar um Brasil diferente daquele que aparece nos jornais e na TV no mundo inteiro”.
K.D.: O Brasil aderiu a dois acordos: zerar o desmatamento das florestas até 2030 e cortar em 30% as emissões de metano. A pressão desses compromissos seria suficiente para uma retomada da política ambiental no Brasil?
C.R.: A mesma caneta que assinou esses papéis fez passar toda a boiada, enfraquecendo ou extinguindo regras ambientais. O mesmo governo que enviou para o Congresso esses projetos de lei que vão causar mais danos, mais desmatamento, mais violência contra povos indígenas, é aquele que assinou esses acordos. Então, não acho que mudam em nada. Da mesma forma, ao longo desses últimos três anos, também houve muitos recados dados por governos, por investidores, dizendo que havia um risco para os negócios entre empresas internacionais e o Brasil, especialmente em relação à cadeia de commodities. Cadeias de supermercado na Europa ameaçaram retirar produtos brasileiros de suas prateleiras, pelo risco da imagem e de colocar para seu consumidor produtos que podem estar associados à destruição da floresta e ao sangue indígena. Grupos de investidores, que somam trilhões de dólares em investimentos no mundo, também deram recados muito claros. E nada disso fez o governo mudar de curso. Não vai ser neste último ano de gestão, com eleições, que haverá qualquer mudança de comportamento deste governo.
É lógico que, com esses compromissos no papel, a pressão de governos e investidores tende a aumentar. Mas a tendência é que o Brasil perca mais investimentos e negócios em 2022, em vez de ter uma mudança radical no comportamento do governo e uma reversão no desmatamento. O trator continua ali. Está tentando se pintar de verde para parecer sustentável, ambientalista, mas continua sendo um trator. Agora, vai doer para economia do Brasil. Haverá prejuízos maiores para alguns setores a partir do ano que vem, com a cobrança pelo cumprimento daquilo que foi assinado. O risco Brasil hoje é o risco ambiental. Mas uma mudança de rumo mesmo, para tratar a questão ambiental com responsabilidade, compromisso, muito além da retórica – isso só com uma mudança de governo.
“As terras indígenas são um grande seguro que o Brasil tem contra os impactos das mudanças climáticas, porque protegem florestas. Cumprir a Constituição e demarcar as terras indígenas que faltam seria um ativo enorme para a sociedade brasileira, para nos proteger de um clima cada vez mais hostil.”
K.D.: Na COP26, governo brasileiro passou a meta de redução de emissões de 43% para 50% e uma redução progressiva do desmatamento ilegal até zerá-lo em 2028. O que achou desses anúncios?
C.R.: Temos que avaliar a credibilidade de quem as propõem. O governo desmantelou a governança de clima do país. O conselho sobre mudanças climáticas seria responsável não só pela atualização das metas, mas também pela estratégia de implementação e financiamento das ações para a redução de emissões. Mas só se reúne ocasionalmente, às vésperas da COP, para discutir que documento apresentar. Não tem discussão estratégica da agenda de clima. Então, a credibilidade é aquela do desmatamento de 30 mil km2, da violência contra povos indígenas, dos projetos de lei que vão gerar mais danos para a floresta.
O Brasil mudou, em um ano, três vezes a base de cálculos até às vésperas da COP. No ano passado, já tinha a Quarta Comunicação, mas apresentou NDC com base na terceira, o que jogava super para cima os números de projeção para 2030 – as emissões brasileiras aumentariam 400 milhões de toneladas, quase uma França inteira de emissões a mais. E mexeu de novo desta vez. Esse aumento de 43% para 50% faz parte do esforço de retórica no papel.
Existe pressão de alguns setores que estão perdendo negócios, ou correndo o risco, e vendo que o mundo está caminhando rumo à sustentabilidade. Mas, de fato, até agora é só no papel. Não pode falar em atualização sem um plano de combate ao desmatamento. O Brasil tinha um plano que gerou resultado, chegou a reduzir o desmatamento na Amazônia em mais de 80% entre 2004 e 2012. Mas foi engavetado. O governo gastou meio bilhão de reais com a chamada Garantia da Lei e da Ordem – colocaram soldados do Exército para combater o desmatamento.
Não tem hoje plano para o cumprimento dessas metas. O fato de o Brasil ter assinado os acordos e colocado metas novas não significa nenhuma mudança de rumo. O primeiro indicador real de mudança seria a retirada dos projetos de lei do enfraquecimento das regras de licenciamento ambiental, da legalização da grilagem e da abertura de terras indígenas para mineração em larga escala.
K.D.: O que o Brasil precisa adotar para que se alinhar à trajetória de 1,5ºC até 2100?
C.R.: Tem que eliminar o desmatamento, não só o ilegal. O Brasil não precisa desmatar para atender a demanda de produção de alimentos, consumo interno ou exportação. Basta recuperar uma área entre 50 milhões e 100 milhões de hectares de pastagens degradadas, abandonadas ou subutilizadas, com menos de um boi médio por hectare. Ao recuperar essas áreas, o solo fica apto para produção agrícola. Avançar sobre floresta o tempo todo está gerando prejuízo para a gente mesmo, inclusive por perda de chuvas, impactando as lavouras do Brasil, além dos chuveiros e torneiras das casas brasileiras.
Tem que restaurar a floresta, ainda mais em um cenário de mudança climática. Por exemplo, agora temos uma crise hídrica em grandes reservatórios. Não é só porque está faltando chuva. Falta floresta no entorno das margens de rios, das nascentes, das bacias que suprem os reservatórios. A restauração florestal em escala é importante para assegurar também a água disponível para a produção agrícola no Brasil, não só para nosso consumo.
Temos que massificar as condicionantes de sustentabilidade de baixo carbono para o crédito agrícola no Brasil. Coloca-se 1%, 2% de crédito do Plano Safra anuais vinculados aos critérios do Programa de Agricultura de Baixo Carbono. É muito pouco. O Plano Safra tem que ser todo para agricultura de baixo carbono, que é a agricultura sustentável. É o produtor sendo mais eficiente, diminuindo a pressão sobre a floresta, ganhando mais dinheiro por área. Desmata menos, produz mais, emite menos gases de efeito estufa.
Continuamos apostando em combustível fóssil. O Ministro da Economia, Paulo Guedes, disse, no dia do lançamento do Programa de Crescimento Verde, que o Brasil tem que acelerar a extração de petróleo do pré-sal. Cerca de 80% da projeção de investimento em energia no Brasil em 10 anos é em combustível fóssil. É absurdo não apenas por uma questão de clima. As energias renováveis estão cada vez mais baratas – a solar já é, em muitos lugares, a mais barata disponível. Associada a baterias eficientes, você consegue inclusive transformar o sistema de transportes individual, coletivo e de carga.
O que precisa, principalmente, é compreender as mudanças climáticas como o maior desafio para o desenvolvimento de qualquer nação. E será cada vez maior em função dos crescentes impactos – para as pessoas, os ecossistemas e a economia – dos eventos climáticos extremos e da mudança nos padrões de clima do planeta. Vai impactar a geografia agrícola e nossa infraestrutura. Precisa colocar a agenda de clima não como uma política de segunda importância, mas no centro da reflexão sobre o desenvolvimento.
Com ela, tem a pauta, por exemplo, do respeito aos direitos de povos indígenas. As terras indígenas são um grande seguro que o Brasil tem contra os impactos das mudanças climáticas, porque protegem florestas. Cumprir a Constituição e demarcar as terras indígenas que faltam seria um ativo enorme para a sociedade brasileira, para nos proteger de um clima cada vez mais hostil.