Pesquisadores batizam nova espécie de louva-a-deus da Mata Atlântica em homenagem ao Museu Nacional

O incêndio de 2018 quase destruiu toda a coleção entomológica da instituição, mas 13 espécimes de louva-a-deus foram salvos, incluindo o recém-descrito Vates phoenix.

Por Gabriel de Sá
Publicado 28 de jan. de 2020, 13:18 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
O Vates phoenix fêmea foi encontrado ao acaso no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, mais de 80 anos depois de um espécime do mesmo gênero ter sido catalogado pelo Museu Nacional. Não é muito comum cruzar com um louva-a-deus: os insetos são tímidos e na maior parte do tempo estão camuflados.
Foto de Projeto Mantis, Divulgação

Na mitologia grega, conta-se que havia uma ave que, depois de morta em combustão, renascia das próprias cinzas. Chamado de fênix, o animal tornou-se símbolo da ressureição e empresta aos humanos ensinamentos sobre força e resiliência. Assim como o pássaro mítico, um exemplar de um simpático e misterioso inseto brasileiro esteve prestes a ser consumido pelo fogo que tomou o Museu Nacional do Rio de Janeiro em setembro de 2018, quando mais de 5 milhões de espécimes da coleção entomológica da entidade viraram pó.

Contudo, uma caixa com 13 louva-a-deus havia sido retirada da instituição um ano antes para fins de pesquisa, salvando-se do incêndio. Entre eles, estava o recém-descrito Vates phoenix, cujo nome faz referência à ave mitológica e homenageia o Museu Nacional. Coletado pelos integrantes do Projeto Mantis, apoiado pela National Geographic Society, o Vates phoenix representa uma nova espécie de louva-a-deus, cuja descrição foi apresentada à comunidade científica nessa terça-feira (28/01), em publicação no European Journal of Taxonomy.

“Quando um taxonomista suspeita que um organismo representa uma espécie, deve seguir vários procedimentos. Somente depois disso ela pode existir ‘oficialmente’ e tornar-se objeto de investigação científica”

por Julio Rivera
Biólogo

“Esse animal conecta o passado e o futuro, o renascimento da coleção de louva-a-deus do Museu Nacional. O que foi perdido não pode ser restaurado, mas, como a fênix, acreditamos que a instituição seguirá viva”, explica o biólogo Leonardo Lanna, fundador do Projeto Mantis, ao lado João Felipe Herculano e Lvcas Fiat.

Focado no estudo dos louva-a-deus, o Projeto Mantis registrou mais de 20 gêneros do inseto em expedições pela Mata Atlântica ao longo dos últimos quatro anos. “Estamos muito contentes com o estudo do Vates phoenix, primeira espécie oficialmente descrita pelo nosso projeto”, detalha Lanna.

Para descrever o Vates phoenix, o grupo contou com a expertise do biólogo peruano Julio Rivera, um dos maiores especialistas em louva-a-deus da comunidade científica internacional. Foi ele quem atentou, ainda em 2017, que a espécie encontrada em Valença (RJ) nunca havia sido descrita.

Coletado em 1935 pelo Museu Nacional do RJ, este exemplar de Vates phoenix fêmea estava bastante desgastado pelo tempo e algumas características importantes para a descrição não estavam aparentes.
Foto de Projeto Mantis, Divulgação

Ao receber as imagens dos animais coletados pelo Mantis nas expedições pela Mata Atlântica, o biólogo Julio Rivera percebeu que se tratavam de espécies que ocorriam naquele bioma, com exceção de uma, do gênero Vates. “Bingo! Deve ser uma nova espécie”, pensou ele à ocasião.

“Os Vates são uma linhagem de louva-a-deus presentes na bacia amazônica, onde há cerca de dez espécies diferentes, além de serem encontradas também entre a América Central e o sul do México”, detalha o peruano. Assim, encontrar um Vates na Mata Atlântica foi um fato inesperado.

Rivera explica que a floresta atlântica é um bioma único, com uma fauna distinta e endêmica de louva-a-deus. Ao examinar a recém-encontrada espécie, ele percebeu que o inseto possuía características morfológicas únicas. Todos os louva-a-deus do gênero Vates apresentam uma espécie de chifre, que na verdade é uma projeção alongada do exoesqueleto encontrada no topo de suas cabeças, dando a eles um aspecto que lembra um unicórnio. A nova espécie possui tal chifre em tamanho reduzido, além de lóbulos alongados nas patas traseiras e centrais e outros aspectos anatômicos nas asas e estruturas genitais.

“Quando um taxonomista suspeita que um organismo representa uma espécie não registrada pela ciência, ele deve seguir vários procedimentos para demonstrar a novidade e nomeá-la”, explica Rivera. “Somente depois disso é que uma espécie pode existir ‘oficialmente’ e tornar-se objeto de investigação científica.”

“Esse animal conecta o passado e o futuro, o renascimento da coleção de louva-a-deus do Museu Nacional. O que foi perdido não pode ser restaurado, mas, como a fênix, acreditamos que a instituição seguirá viva”

por Leonardo Lanna
Projeto Mantis

O processo de descrição envolve comparações de análises morfológicas, descrição detalhada dos aspectos físicos, classificação dentro da ‘árvore da vida’ (filogenia, em termos científicos) e o batismo com um termo binomial. Todo o procedimento deve seguir os padrões estabelecidos no Código Internacional de Nomenclatura Zoológica.

A publicação do artigo acadêmico com a nova espécie é analisada por diversos profissionais da área até ganhar a forma final, uma espécie de controle de qualidade realizada pelos “pares”. “Uma vez validado e finalmente publicado, o artigo científico representa a ‘certidão de nascimento’ da nova espécie”, explica Rivera.

No meio do caminho...

No Museu Nacional, havia uma única espécie de fêmea do gênero de louva-a-deus Vates. Coletado em 1935, o exemplar estava bastante desgastado pelo tempo e algumas características importantes para a descrição detalhada não estavam visíveis. Mas o acaso também pode dar uma mãozinha à ciência: a orientadora do grupo, Maria Lúcia Moscatelli, teve seu caminho cruzado por um louva-a-deus no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e, por pura coincidência, tratava-se de uma fêmea da espécie que o Projeto Mantis estava estudando.

Os louva-a-deus do gênero Vates apresentam uma espécie de "chifre", o que dá a eles um aspecto de unicórnio. A nova espécie possui chifre reduzido e lóbulos alongados nas patas traseiras e centrais.
Foto de Projeto Mantis, Divulgação

O Vates phoenix fêmea foi encontrado no mesmo local e no mesmo mês que o espécime presente do Museu Nacional, só que 83 anos depois. E não é muito comum ver um louva-a-deus cruzando seu caminho: os insetos são tímidos e na maior parte do tempo estão camuflados na natureza.

“É difícil encontrá-los: eles não têm som, não têm cheiro, não refletem luz, são raramente capturados por armadilhas e camuflam-se com facilidade. Na maioria das vezes são necessárias buscas noturnas com o uso de lanternas”, explica Lanna. A dificuldade em achar o inseto pode explicar o fato de que eles ainda são pouco estudados no Brasil, em comparação a outros insetos. Acredita-se que possam existir até 500 espécies de louva-a-deus no país, mas apenas 250 foram catalogados.

Desde a fundação, em 2015, o Projeto Mantis coleta os louva-a-deus em seus habitats naturais e os mantêm vivos para estudá-los posteriormente. “Nunca sacrificamos nenhum louva-a-deus em nossa trajetória”, diz Lanna. “Aprende-se muito sobre comportamento, o jeito de cada espécie, o tempo de vida, o ritmo, o desenvolvimento”. Na última expedição do grupo, pela Amazônia peruana, os integrantes viajaram três dias de barco e mais de 20 horas de ônibus para que os insetos chegassem vivos ao destino final.

Havia mais de 900 espécimes de louva-a-deus no Museu Nacional, e foram salvos apenas os exemplares levados pelo Projeto Mantis.  “Trabalhar com esses animais é difícil, e a consulta à coleção do Museu era essencial em nossa busca para entender como e onde vivem tais espécies em nosso país”, pontua Lanna. Ele acredita que existiam novas espécies no acervo do Museu, inclusive algumas já extintas. “Nos resta lutar pela ciência brasileira e voltar a construir essa história.”

Conheça o incrível louva-a-deus dragão brasileiro
Apoiados pela National Geographic Society, os exploradores do Projeto Mantis apresentam imagens que mostram o comportamento do inseto brasileiro.

Os louva-a-deus habitam os mais variados tipos de ecossistemas brasileiros, das restingas aos campos de altitude. Por estarem presentes em diversos habitats, são parte ativa de diferentes ciclos e cadeias. “Esses insetos participam do delicado equilíbrio dos ecossistemas, tanto como predadores de seres menores (geralmente outros insetos), quanto como alimento para seres maiores, como pássaros e anfíbios”, explica Lanna.

“A ausência dos louva-a-deus na natureza causaria consequências ainda desconhecidas. Como são caçadores e carnívoros, podem atuar no controle de populações de pragas”, exemplifica Lanna. “Ainda há muito a se descobrir sobre eles.”

Acompanhe o trabalho do Projeto Mantis nas redes sociais.
 
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