Pesquisadores batizam nova espécie de louva-a-deus da Mata Atlântica em homenagem ao Museu Nacional
O incêndio de 2018 quase destruiu toda a coleção entomológica da instituição, mas 13 espécimes de louva-a-deus foram salvos, incluindo o recém-descrito Vates phoenix.
Na mitologia grega, conta-se que havia uma ave que, depois de morta em combustão, renascia das próprias cinzas. Chamado de fênix, o animal tornou-se símbolo da ressureição e empresta aos humanos ensinamentos sobre força e resiliência. Assim como o pássaro mítico, um exemplar de um simpático e misterioso inseto brasileiro esteve prestes a ser consumido pelo fogo que tomou o Museu Nacional do Rio de Janeiro em setembro de 2018, quando mais de 5 milhões de espécimes da coleção entomológica da entidade viraram pó.
Contudo, uma caixa com 13 louva-a-deus havia sido retirada da instituição um ano antes para fins de pesquisa, salvando-se do incêndio. Entre eles, estava o recém-descrito Vates phoenix, cujo nome faz referência à ave mitológica e homenageia o Museu Nacional. Coletado pelos integrantes do Projeto Mantis, apoiado pela National Geographic Society, o Vates phoenix representa uma nova espécie de louva-a-deus, cuja descrição foi apresentada à comunidade científica nessa terça-feira (28/01), em publicação no European Journal of Taxonomy.
“Quando um taxonomista suspeita que um organismo representa uma espécie, deve seguir vários procedimentos. Somente depois disso ela pode existir ‘oficialmente’ e tornar-se objeto de investigação científica”
“Esse animal conecta o passado e o futuro, o renascimento da coleção de louva-a-deus do Museu Nacional. O que foi perdido não pode ser restaurado, mas, como a fênix, acreditamos que a instituição seguirá viva”, explica o biólogo Leonardo Lanna, fundador do Projeto Mantis, ao lado João Felipe Herculano e Lvcas Fiat.
Focado no estudo dos louva-a-deus, o Projeto Mantis registrou mais de 20 gêneros do inseto em expedições pela Mata Atlântica ao longo dos últimos quatro anos. “Estamos muito contentes com o estudo do Vates phoenix, primeira espécie oficialmente descrita pelo nosso projeto”, detalha Lanna.
Para descrever o Vates phoenix, o grupo contou com a expertise do biólogo peruano Julio Rivera, um dos maiores especialistas em louva-a-deus da comunidade científica internacional. Foi ele quem atentou, ainda em 2017, que a espécie encontrada em Valença (RJ) nunca havia sido descrita.
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Morfologia única
Ao receber as imagens dos animais coletados pelo Mantis nas expedições pela Mata Atlântica, o biólogo Julio Rivera percebeu que se tratavam de espécies que ocorriam naquele bioma, com exceção de uma, do gênero Vates. “Bingo! Deve ser uma nova espécie”, pensou ele à ocasião.
“Os Vates são uma linhagem de louva-a-deus presentes na bacia amazônica, onde há cerca de dez espécies diferentes, além de serem encontradas também entre a América Central e o sul do México”, detalha o peruano. Assim, encontrar um Vates na Mata Atlântica foi um fato inesperado.
Rivera explica que a floresta atlântica é um bioma único, com uma fauna distinta e endêmica de louva-a-deus. Ao examinar a recém-encontrada espécie, ele percebeu que o inseto possuía características morfológicas únicas. Todos os louva-a-deus do gênero Vates apresentam uma espécie de chifre, que na verdade é uma projeção alongada do exoesqueleto encontrada no topo de suas cabeças, dando a eles um aspecto que lembra um unicórnio. A nova espécie possui tal chifre em tamanho reduzido, além de lóbulos alongados nas patas traseiras e centrais e outros aspectos anatômicos nas asas e estruturas genitais.
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“Quando um taxonomista suspeita que um organismo representa uma espécie não registrada pela ciência, ele deve seguir vários procedimentos para demonstrar a novidade e nomeá-la”, explica Rivera. “Somente depois disso é que uma espécie pode existir ‘oficialmente’ e tornar-se objeto de investigação científica.”
“Esse animal conecta o passado e o futuro, o renascimento da coleção de louva-a-deus do Museu Nacional. O que foi perdido não pode ser restaurado, mas, como a fênix, acreditamos que a instituição seguirá viva”
O processo de descrição envolve comparações de análises morfológicas, descrição detalhada dos aspectos físicos, classificação dentro da ‘árvore da vida’ (filogenia, em termos científicos) e o batismo com um termo binomial. Todo o procedimento deve seguir os padrões estabelecidos no Código Internacional de Nomenclatura Zoológica.
A publicação do artigo acadêmico com a nova espécie é analisada por diversos profissionais da área até ganhar a forma final, uma espécie de controle de qualidade realizada pelos “pares”. “Uma vez validado e finalmente publicado, o artigo científico representa a ‘certidão de nascimento’ da nova espécie”, explica Rivera.
No meio do caminho...
No Museu Nacional, havia uma única espécie de fêmea do gênero de louva-a-deus Vates. Coletado em 1935, o exemplar estava bastante desgastado pelo tempo e algumas características importantes para a descrição detalhada não estavam visíveis. Mas o acaso também pode dar uma mãozinha à ciência: a orientadora do grupo, Maria Lúcia Moscatelli, teve seu caminho cruzado por um louva-a-deus no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e, por pura coincidência, tratava-se de uma fêmea da espécie que o Projeto Mantis estava estudando.
O Vates phoenix fêmea foi encontrado no mesmo local e no mesmo mês que o espécime presente do Museu Nacional, só que 83 anos depois. E não é muito comum ver um louva-a-deus cruzando seu caminho: os insetos são tímidos e na maior parte do tempo estão camuflados na natureza.
“É difícil encontrá-los: eles não têm som, não têm cheiro, não refletem luz, são raramente capturados por armadilhas e camuflam-se com facilidade. Na maioria das vezes são necessárias buscas noturnas com o uso de lanternas”, explica Lanna. A dificuldade em achar o inseto pode explicar o fato de que eles ainda são pouco estudados no Brasil, em comparação a outros insetos. Acredita-se que possam existir até 500 espécies de louva-a-deus no país, mas apenas 250 foram catalogados.
Desde a fundação, em 2015, o Projeto Mantis coleta os louva-a-deus em seus habitats naturais e os mantêm vivos para estudá-los posteriormente. “Nunca sacrificamos nenhum louva-a-deus em nossa trajetória”, diz Lanna. “Aprende-se muito sobre comportamento, o jeito de cada espécie, o tempo de vida, o ritmo, o desenvolvimento”. Na última expedição do grupo, pela Amazônia peruana, os integrantes viajaram três dias de barco e mais de 20 horas de ônibus para que os insetos chegassem vivos ao destino final.
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Adoráveis caçadores
Havia mais de 900 espécimes de louva-a-deus no Museu Nacional, e foram salvos apenas os exemplares levados pelo Projeto Mantis. “Trabalhar com esses animais é difícil, e a consulta à coleção do Museu era essencial em nossa busca para entender como e onde vivem tais espécies em nosso país”, pontua Lanna. Ele acredita que existiam novas espécies no acervo do Museu, inclusive algumas já extintas. “Nos resta lutar pela ciência brasileira e voltar a construir essa história.”
Os louva-a-deus habitam os mais variados tipos de ecossistemas brasileiros, das restingas aos campos de altitude. Por estarem presentes em diversos habitats, são parte ativa de diferentes ciclos e cadeias. “Esses insetos participam do delicado equilíbrio dos ecossistemas, tanto como predadores de seres menores (geralmente outros insetos), quanto como alimento para seres maiores, como pássaros e anfíbios”, explica Lanna.
“A ausência dos louva-a-deus na natureza causaria consequências ainda desconhecidas. Como são caçadores e carnívoros, podem atuar no controle de populações de pragas”, exemplifica Lanna. “Ainda há muito a se descobrir sobre eles.”
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