Dia da Terra: quem são os coletores de sementes e grama que protegem o Cerrado brasileiro de desaparecer

Agricultores familiares e quilombolas do entorno da Chapada dos Veadeiros trabalham para restaurar áreas do bioma considerado o “berço das águas” do Brasil. Seu objetivo: plantar tantas sementes quanto estrelas no céu.

Por Redação National Geographic Brasil
Publicado 19 de abr. de 2023, 11:00 BRT, Atualizado 5 de abr. de 2024, 14:15 BRT
Claudomiro Cortés é o idealizador de uma associação que coordena 200 famílias de coletores de sementes ...

Claudomiro Cortés é o idealizador de uma associação que coordena 200 famílias de coletores de sementes nativas do Cerrado. As sementes coletadas, principalmente de capins e gramíneas, são usadas em projetos de restauração de áreas degradas. Na foto, Cortés segura um ramo de capim mulungu (Andropogon leucostachyus), também conhecido como capim-colchão. 

Foto de Associação Cerrado de Pé

Todos os fins de semana, Adelice Faria da Silva, de 51 anos, se levanta de madrugada, agarra sua barraca e tudo mais o que vai precisar para um dia ao ar livre. Ela segue firme para o meio do mato da Chapada dos Veadeiros, em pleno Cerrado brasileiro, para desempenhar uma função única: ajudar no resgate das nascentes de alguns dos principais rios do país – as quais estão, justo ali, em sua vizinhança. 

“De uns anos para cá, a gente vê mais lugares com falta de água. E tinha tanta água por aqui antes”, diz Adelice em entrevista à National Geographic lembrando das diversas nascentes e córregos que banhavam a região de Teresina de Goiás, onde mora e atua como coletora de sementes. 

Adelice integra uma das 200 famílias que se tornaram parceiras da Associação Cerrado de Pé, uma organização sem fins lucrativos de coletores de sementes nativas do Cerrado que vivem nos municípios e comunidades do entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no estado de Goiás.  

Adelice da Silva, à direita, é acompanhada de duas amigas em um dia de coleta. 

Foto de Associação Cerrado de Pé

As toneladas de sementes de gramíneas, ervas, arbustos e árvores coletadas são usadas em projetos e iniciativas de recuperação de áreas degradadas do bioma do Cerrado, que é conhecido como o “berço das águas” do Brasil. “É um trabalho importante para mim e para todo mundo que vive aqui. Se tem uma forma de recuperar como era antes, de fazer a água voltar, vale a pena fazer”, comenta a coletora, que também atua como merendeira em uma escola pública do município.  

Cerrado: a caixa d’água do Brasil 

O apelido que o Cerrado possui entre os biomas brasileiros não é vão. Ele ocupa 24% do território nacional e, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é fundamental para o abastecimento dos recursos hídricos de todo o país. Os rios que nascem no Cerrado alimentam seis das oito grandes bacias hidrográficas do Brasil. 

Segundo a Rede Cerrado, associação sem fins lucrativos de mais de 30 anos de atuação e composta por mais de 50 organizações da sociedade civil, a contribuição hídrica do bioma para a vazão da bacia do Paraná, por exemplo, chega a 50%. As nascentes da região também contribuem para a bacia do Tocantins (62% da vazão) e para a do rio São Francisco (94% da vazão). A rede ainda afirma que o Pantanal, um bioma quase inteiramente alagável que é um dos santuários da biodiversidade brasileira, é totalmente dependente da água originada no Cerrado.

Fora isso, o Cerrado também abriga parte de oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras e é onde estão localizados três dos principais aquíferos do país: Bambuí, Urucuia e Guarani.

Mas esse papel de “caixa d’água do Brasil” está ameaçado. De acordo com dados do MapBiomas, uma rede colaborativa de pesquisa que realiza o monitoramento da cobertura e uso do solo, superfície de água e cicatrizes de fogo nos biomas brasileiros, o Cerrado perdeu 970 mil hectares de vegetação típica de áreas úmidas entre 1985 e 2021, o equivalente a 12% de todas as suas áreas úmidas.

“Os campos úmidos e as veredas praticamente já não têm cor, as cachoeiras estão diminuindo e as nascentes secando. Se não fizermos algo agora, logo não terá mais o que salvar”, lamenta Claudomiro de Almeida Cortés, idealizador e presidente da Associação Cerrado de Pé, que conta com centenas de famílias na coleta de sementes nativas e projetos de restauração do Cerrado

mais populares

    veja mais

    Ao ano, a Associação Cerrado de Pé coleta, em média, 10 toneladas de sementes nativas do Cerrado. Para 2023, a meta é coletar 15 toneladas, segundo o presidente da instituição. 

    Foto de Associação Cerrado de Pé

    Como colher sementes pode salvar o Cerrado

    Criada em 2012 a partir de um grupo de 66 coletores voluntários, a Cerrado de Pé conta atualmente com 200 famílias de comunidades do entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros: o Assentamento Silvio Rodrigues, Vila de São Jorge, Colinas do Sul, Alto Paraíso de Goiás, Teresina de Goiás, Cavalcante, São João d'Aliança e comunidades do Território Quilombola Kalunga.

    Composta por 77% de mulheres, o contingente de coletores recolhe, beneficia, armazena e vende sementes de mais de 100 espécies vegetais do Cerrado. Jatobá, pequi, baru, jacarandá, mangaba, babaçu e bacuri são algumas das espécies nativas que os voluntários aprendem a identificar e reconhecer, respeitando as melhores formas e épocas para obter essas sementes. Por ano, segundo Cortés, os coletores da Cerrado de Pé reúnem, em média, 10 toneladas de sementes.

    “Quando comecei, vizinhos me viam coletando capim e me taxavam de doido. ‘O que esse homem está fazendo colhendo mato?’, perguntavam”

    por Claudomiro de Almeida Cortés, idealizador e presidente da Associação Cerrado de Pé

    Os coletores, que são em sua maioria agricultores familiares, passam por capacitações ministradas pela Associação em conjunto com a Rede de Sementes do Cerrado, instituição que também ajuda na comercialização das sementes. “Tudo o que passamos para eles vai de encontro com o que já conhecem, porque eles vivem o Cerrado”, afirma Anabele Gomes, vice-presidente da Rede. 

    “Passa pela valorização do território e de sua identidade como agricultores e como quilombolas. Eles entendem o trabalho de coleta como uma reapropriação da própria terra, além de servir como fonte de renda estável para muitas famílias”, afirma Gomes. Em 2022, a Cerrado de Pé vendeu o equivalente à R$ 600 mil em sementes para projetos de restauração, de acordo com o presidente da Associação. “Para 2023, nossa estimativa é superar os 700 mil reais”,  projeta Cortés. 

    Uma vez coletadas, as sementes são comercializadas e direcionadas para projetos de restauração, também realizados por colaboradores da Cerrado de Pé, que utilizam uma técnica conhecida por “muvuca”. A tecnologia consiste em uma mistura de várias sementes nativas, semeadas diretamente no solo. 

    A muvuca é uma técnica de agricultura de povos tradicionais que consiste em fazer uma mistura de sementes de espécies nativas antes do plantio. Isso faz com que as espécies sejam selecionadas e com alta diversidade.

    Foto de Associação Cerrado de Pé

    Desde o início da Associação, quase 600 hectares do Parque da Chapada dos Veadeiros foram restaurados, principalmente na região afetada pelos graves incêndios que consumiram cerca de 30% de sua área em 2017. 

    Atualmente, a organização também está envolvida em projetos para a restauração de áreas atingidas pela quebra da barragem de Mariana, em Minas Gerais, e na recuperação de mais de 800 hectares na Chapada como parte de uma iniciativa em parceria com a Caixa Econômica Federal. “Os dois projetos juntos irão precisar de mais de 16 toneladas de sementes”, conta Cortés. 

    Para restaurar o Cerrado é preciso plantar mato

    Por mais que as árvores frutíferas, como o jatobá e o pequi, sejam grandes favoritos dos coletores, segundo Cortés as espécies mais importantes para a restauração do bioma não são tão frondosas. “Muitos também trabalham na coleta de capins e gramíneas, peças essenciais para a restauração das áreas degradadas”, informa Natanna Horstmann, responsável técnica da Rede de Sementes do Cerrado.

    “Quando comecei, vizinhos me viam coletando capim e me taxavam de doido. ‘O que esse homem está fazendo colhendo mato?’, perguntavam”, conta Cortés. “Mas o Cerrado é uma savana, não uma floresta. Ele precisa da cobertura de capins e gramíneas para prosperar.”

    Jader Guilhermino de Brito, 60 anos, é um dos coletores que se especializa na coleta de capins. Ele atua nesta função em tempo integral desde 2012, quando a Cerrado de Pé era apenas um pequeno grupo de voluntários. Jader recolhe sementes apenas de capins nativos e gramíneas, mesmo que, para isso, tenha que entrar mais fundo na savana. “Saio todos os dias por volta das 4h da manhã, com meu caderno de coleta. Costumo sair focado em uma espécie de cada vez, mas às vezes isso faz com que eu tenha que ir mais longe, tem que andar mesmo.”

    mais populares

      veja mais
      À esquerda: No alto:

      A coleta de capins e gramíneas é de extrema importância para a restauração do Cerrado. Por ser um bioma de savana, essas espécies são as protagonistas da cobertura vegetal. Na foto, Cortés se prepara para uma coleta do capim mulungu (Andropogon Leucostachyus).

      Foto de Vitor Saraiva Associação Cerrado de Pé
      À direita: Acima:

      Capim rabo-de-burro (Aristida riparia) recém coletado

      Foto de Associação Cerrado de Pé

      Assim como Jader, Cortés também se tornou um especialista em “capim agreste”, como chamavam as mais de 500 espécies nativas do Cerrado. “Mas isso foi mudando, vimos a necessidade de ter um nome popular para cada um deles porque era difícil conhecer e ensinar pelos nomes científicos”, conta o presidente da Associação. 

      Cortés foi o responsável por batizar diversas espécies de capins e gramíneas. Entre eles, o capim brinco-de-princesa (Loudetiopsis chrysothrix (Nees) Conert); o capim pé-de-galinha (Eleusine indica); o capim rabo-de-burro (Aristida riparia); o capim roxo (Schizachyrium sanguineum); e o capim fiapo (Trachypogon spicatus).

      “Hoje, usamos esses nomes nas capacitações e até acadêmicos que vêm estudar a região adotaram essa nomenclatura”, afirma Cortés. 

      Plantar tantas sementes quanto há estrelas no céu

      O trabalho de coleta da Cerrado de Pé, ainda que relevante para a conservação e restauração do bioma, também parece trazer satisfação e sensação de “dever cumprido” para os coletores. “Uma coisa que vemos entre eles é que o trabalho de coleta traz benefícios mais subjetivos para as comunidades. Além dos benefícios ambientais e de renda, os coletores gostam do que fazem também pelo retorno social, pela interação, por integrarem parte de algo maior”, afirma Anabele Gomes, da Rede de Sementes do Cerrado. 

      “Saio todos os dias por volta das 4h da manhã, com meu caderno de coleta. Costumo sair focado em uma espécie de cada vez, mas às vezes isso faz com que eu tenha que ir mais longe, tem que andar mesmo.”

      por Jader Guilhermino de Brito, coletor da Cerrado de Pé

      Nesse sentido, tanto o presidente da Associação quanto Adelice e Jader têm um posicionamento em comum: pretendem continuar com a coleta até quando as pernas permitirem andar. 

      “É muito importante para mim”, comenta Adelice. Ela conta que percebeu como queria continuar trabalhando com a coleta de sementes quando acompanhou uma amiga durante um fim de semana com reservado para essa tarefa em Alto do Paraíso, Goiás. “Foi muito divertido, tinha alegria, todo mundo conversava, era uma felicidade. Percebi ali que queria fazer isso para sempre.”

      Já Jader, sente que a restauração do Cerrado é algo que “está no sangue”. “É algo que faço com amor, com carinho. É um trabalho honrado, algo que o planeta precisa”, diz. 

      Cortés, por sua vez, tem uma meta mais ambiciosa. “Para os próximos anos, meu objetivo é colher e plantar sementes na mesma quantidade de estrelas no céu. Uma meta infinita, enquanto eu puder e enquanto for necessário.”

      No momento, a prioridade da Cerrado de Pé é construir uma “Casa de Sementes”, um local específico para o armazenamento de sementes que, atualmente, são guardadas de forma improvisada e inapropriada, o que prejudica a taxa de germinação, comprometendo o trabalho de restauração. 

      Claudomiro Cortés carrega um saco cheio de sementes de capim depois de um dia de coleta.

      Foto de Vitor Saraiva Associação Cerrado de Pé

      Para ajudar a alcançar esse objetivo, é possível fazer doações ou se tornar um voluntário no local e aprender, na prática, como manter o Cerrado vivo. Mais informações estão disponíveis no site da Cerrado de Pé

      mais populares

        veja mais
        loading

        Descubra Nat Geo

        • Animais
        • Meio ambiente
        • História
        • Ciência
        • Viagem
        • Fotografia
        • Espaço
        • Vídeo

        Sobre nós

        Inscrição

        • Assine a newsletter
        • Disney+

        Siga-nos

        Copyright © 1996-2015 National Geographic Society. Copyright © 2015-2024 National Geographic Partners, LLC. Todos os direitos reservados