Do lixo às mortes: a crise que forçou o Nepal a criar regras duras para salvar o Everest

Uma recente regulamentação feita pelo Nepal – um dos países onde fica o Everest – quer tornar mais rigorosa a liberação de escaladores na montanha mais alta do mundo. O Everest vem se tornando um lugar mortal para aventureiros pouco preparados.

Por Anna Callaghan
Publicado 10 de dez. de 2025, 07:08 BRT
Uma equipe de expedição em alta altitude atravessa uma fenda no Monte Everest.

Uma equipe de expedição em alta altitude atravessa uma fenda no Monte Everest.

Foto de Mark Fisher, Nat Geo Image Collection

temporada de escaladas ao Monte Everest de 2025 começou com uma novidade: enquanto alpinistas e aventureiros sonhavam em conquistar o pico mais alto do planeta, a Câmara Alta do Parlamento do Nepal apresentava um novo projeto de lei sobre o turismo na montanha. A proposta incluía um conjunto de novas regras para dificultar significativamente os requisitos para quem pode tentar escalarEveresttrabalhar como guia – além de alterar o quanto isso custaria aos interessados.  

A proposta de 2025 inclui a exigência de que os aspirantes ao Everest devem primeiro escalar um pico de 7 mil metros localizado no Nepal – o Monte Everest tem 8.848 metros de altura acima do nível do mar. Já quanto aos guias, a proposta pede que todos eles sejam cidadãos nepaleses e que tenham atestados médicos confirmando sua boa saúde obtidos em instalações aprovadas no próprio país.

Novas taxas de lixoum seguro para cobrir a remoção cara de cadáveres da montanha, em caso de morte durante a escalada, também estão previstos no projeto. Segundo o jornal estadunidense “The Washington Post”, o custo da remoção de um cadáver do Monte Everest varia entre 30 mil e 70 mil dólares (o equivalente a cerca de R$165 mil a R$385 mil, na cotação de hoje). 

Mas anúncios como este ocorrem quase todos os anos no Nepal. O governo propõe novas regras destinadas a melhorar a segurança e a responsabilidade no pico, como a proibição de alpinistas solo e helicópteros, ou a exigência de chips de rastreamentoremoção de fezes, mas elas raramente são implementadas. 

Isso se deve à resistência das empresas de guias e à incapacidade de aprovar a legislação proposta. Muitas regras já foram propostas anteriormente, mas nunca foram aprovadas como lei. Aproveite a chegada do Dia Internacional das Montanhas, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e celebrado anualmente em 11 de dezembro, para saber mais sobre esta situação. 

Dois alpinistas participam de uma caminhada matinal na cascata de gelo Khumbu, com o pico Pumori ...

Dois alpinistas participam de uma caminhada matinal na cascata de gelo Khumbu, com o pico Pumori iluminado ao fundo.

Foto de Eric Daft, Nat Geo Image Collection

As novas regras para escalar o Everest – e evitar uma avalanche de mortos

De acordo com dados da CNN norte-americana, no entanto, este mais recente projeto acabou passando no parlamento nepalês. E já a partir deste ano o preço da licença para subir o Everest aumentou 36%, saltando de 11 mil dólares para 15 mil (ou cerca de R$80 mil). Os aspirantes a subir o Everest também vão precisar mesmo mostrar uma comprovação de já ter escalado ao menos uma montanha de mais de sete mil metros de altura, pois esta regra também já está valendo.

De acordo com Lakpa Rita Sherpa, que foi guia no Monte Everest por duas décadas e escalou o pico 17 vezesalgumas dessas novas ideias são geralmente boas — como garantir que os alpinistas tenham alguma experiência em altitude —, mas outras semelhantes já foram propostas no passado e “nunca foram aprovadas ou aplicadas”. 

Ele citou a dificuldade de implementar essas regras, que exigiriam que o governo acompanhasse o cumprimento por centenas de empresas e alpinistas, em meio à alta rotatividade no Ministério do Turismo e à prevalência de suborno no país. (O Ministério não respondeu a um pedido de comentário sobre o suposto suborno no Nepal).  

“A razão pela qual eles fazem isso é para promover os negócios e dar a impressão de que estão tentando tornar o alpinismo no Nepal mais seguro, a fim de atrair mais pessoas”, disse Alan Arnette, que escalou o Everest em 2011, é um blogueiro de longa data sobre o Everest. Ele acompanha as alterações em propostas e regras há mais de uma década. “A razão pela qual isso não é implementado é porque as operadoras não seguem as regras e, então, o governo não as aplica — porque todos sabem que, se aplicarem algumas dessas regras, isso causaria uma queda nos negócios.”

O Ministério da Cultura, Turismo e Aviação Civil e o Conselho de Turismo do Nepal não responderam aos pedidos de comentários.

Por outro lado, o turismo é uma das maiores indústrias do Nepal, e Monte Everest — o pico mais alto do mundo — é sua joia da coroa. De acordo com os dados turísticos mais recentes, até maio de 2025 cerca de 374 alpinistas, de 49 países diferentes, estiveram no Monte Everest. Isso gerou 4 milhões de dólares em royalties apenas com as taxas de permissão (ou cerca de R$22 milhões). Em comparação com os 2,48 milhões de dólares (ou R$13 milhões e 640 mil) captados em 2015, com o acesso de 359 pessoas, a diferença é bastante considerável.

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    Helicópteros pousam e decolam do heliporto no Acampamento Base em meio a resgates de alpinistas feridos do Acampamento 2.

    Foto de MAX LOWE, Nat Geo Image Collecion

    O número de mortes no Monte Everest

    À medida que um grande número de alpinistas continua a migrar para o Monte Everest a cada ano, o país colhe benefícios econômicos, mas também precisa lidar com os problemas que isso traz — como engarrafamentos na montanha, questões relacionadas ao gerenciamento de lixo e resíduos e aumento do número de mortes. Em 202318 alpinistas morreram no Everest e, em 2024oito alpinistas perderam a vida. Em 2025, o número confirmado foi de 5 mortos.

    Algumas das causas mais comuns de morte no Everest são mal-estar agudo da montanha (AMS), quedas, doenças/exaustãodesaparecimentos e avalanches. Com o aumento do número de pessoas rumo ao pico, a equipe de apoio precisa transportar um volume maior de equipamentos pela perigosa cascata de gelo Khumbu — local onde ocorreu uma avalanche que matou 16 sherpas (etnia do povo do Himalaia conhecida por por sua habilidade de escalar montanhas) em 2015 enquanto eles faziam exatamente isso. 

    Naquele mesmo ano, alegando razões de segurança, a Alpenglow Expeditions (uma empresa dos Estados Unidos que oferece serviços de montanhismo, e escalada com sede na Califórnia) transferiu suas viagens ao Everest do lado sul do picono Nepalpara o lado norteno Tibete.

    A empresa afirmou que o lado nepalês ficou superlotado com membros de equipes inexperientes e guias não qualificados”. O lado norte é muito menos lotado e muito mais rígido quando se trata de regras, disse Lakpa Rita. “Na China, você tem que seguir as regras, não importa o que aconteça”, disse ele. “Se você não fizer isso, não receberá permissão para escalar.”

    ExplorersWeb (um site de notícias especializado em montanhismo e aventuras em ambientes extremos) informou, em setembro de 2024, que as regras estabelecidas pela Associação de Montanhismo China-Tibete (CTMA) estipulam que os alpinistas devem apresentar um currículo de escalada e um atestado médico. 

    Além disso, precisam já ter escalado um pico de 7 mil metros, estar acompanhados por um guia de montanha profissional e usar oxigênio acima dos 7 mil metros. (Em 2016, Melissa Arnot Reid se tornou a primeira mulher estadunidense a chegar ao cume do Everest sem oxigênio suplementar. Ela escalou pelo lado do Tibete.)

    Um membro da expedição atravessa uma ponte de escadas de alumínio amarradas acima de uma fenda ...

    Um membro da expedição atravessa uma ponte de escadas de alumínio amarradas acima de uma fenda na cascata de gelo Khumbu.

    Foto de Andy Bardon, Nat Geo Image Collection

    Para escalar o Everest: por que é recomendado ter experiência em montanhas de 7 mil metros?

    Uma das propostas que foi considerada controversa no Nepal, mas está em vigência em outros lugares é a de que os alpinistas precisam já haver escalado – com sucesso – algum dos picos de 7 mil metros no Nepal antes de tentar o Everest. 

    proposição que virou lei não leva em conta os picos da mesma altura em outros países, como o Denali (no Alasca, Estados Unidos), ou o Aconcágua (dentro da Cordilheira dos Andes, na Argentina). 

    Embora o objetivo seja garantir que apenas aqueles com experiência comprovada em alta altitude sejam autorizados a subir a montanha, após várias temporadas mortais marcadas por superlotação e clientes mal preparados, Arnette disse que muitos dos picos de 7 mil metros aceitos são “remotos e perigosos”. Na lista estão picos como o Annapurna IV, o Api Himal (no extremo oeste do país), o Tilicho Peak e o Baruntse – todos em território nepalêsDeve haver margem para que picos populares, como Denali e Aconcágua, sejam considerados para esse requisito, dizem os especialistas. 

    Esse tipo de pré-requisito para escalada foi proposto algumas vezes nos últimos 30 anos, com o governo sugerindo que os alpinistas escalassem um pico de 6 mil metros antes do Everest. A regra foi descartada após resistência de empresas de expedição e alpinistas. “A razão pela qual as pessoas não querem reduzir o número de escaladores no Everest é porque temem perder trabalho”, disse Lakpa Rita, que já conversou com autoridades no passado para encontrar maneiras de resolver o problema da superlotação. “É tudo uma questão de dinheiro.”

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      Lâmpadas de cabeça iluminam o caminho que os alpinistas percorrem ao subir a cascata de gelo Khumbu, acima do acampamento base do Everest, nas primeiras horas da manhã.

      Foto de Brittany Mumma, Nat Geo Image Collection

      Exigências médicas para escalar o pico mais alto do mundo

      Na nova regra, todos os alpinistas precisam apresentar um atestado médico emitido no último mês por uma instituição médica aprovada pelo governo do Nepal para confirmar que estão em boas condições de saúde. Isso exigiria que a pessoa pagasse pela expedição, viajasse ao Nepal e talvez fosse informada de que não está em boas condições de saúde para escalar.

      Arnette acredita que, independentemente da lei, é uma boa ideia fazer um exame médico rigoroso antes da escalada, como um teste de esforço cardíaco para alpinistas com mais de 50 anos e uma verificação dos níveis de ferro para alpinistas do sexo feminino.

      Guias nepaleses para chegar ao topo da montanha

      A regra de que os sirdars (chefes da etnia sherpa), guias de alta altitude e ajudantes em expedições devem ser cidadãos nepaleses já havia sido proposta anteriormente. 

      Políticas semelhantes existem em outros países com turismo de alta altitude. O Equador, por exemplo, tem uma exigência semelhante que obriga o uso de guias locais em certos picos. No Monte Rainier, em Washington, Estados Unidos, existem apenas três serviços de guias norte-americanos autorizados a operar na montanha e 15 serviços de guias que podem se inscrever para viagens únicas na montanha.

      Lakpa Rita reconhece que propostas como essa dão aos guias ou funcionários nepaleses melhores oportunidades e a possibilidade de ganhar mais dinheiro, ainda que seja difícil monitorar e fazer cumprir a lei. 

      O Monte Everest e o Lhotse são vistos através de bandeiras de oração budistas no Nepal.

      O Monte Everest e o Lhotse são vistos através de bandeiras de oração budistas no Nepal.

      Foto de Edson Vandeira, Nat Geo Image Collection

      Novas rotas e recordes para o Everest

      Além de todos os novos pontos aprovados do lado do Nepal, é preciso saber ainda que, ao tentar uma nova rota no Monte Everest, os alpinistas devem obter permissão do Ministério do Turismo. 

      A regra diz que os alpinistas devem seguir essa rota e só podem mudar em caso de emergência – e com a aprovação de um oficial de ligação do governo. Já os alpinistas que estiverem tentando qualquer tipo de recorde devem declarar isso com antecedência.

      Outra nova exigência de seguro  deve cobrir a remoção cara e muitas vezes perigosa de cadáveres da montanha. E para lidar melhor com o problema do lixo no Everest, o depósito reembolsável de 4 mil dólares será substituído por uma taxa de lixo não reembolsável para que o Ministério do Turismo gerencie e remova o lixo do pico. 

      De acordo com Lakpa Rita, regras como essa, que se concentram na conformidade das empresas de expedição em vez de rastrear certificados médicos e de escalada para cada alpinista individualmente, têm mais chances de sucesso. 

      Uma regra que o escalador contou já estar sendo aplicada é a recente exigência de retirar as fezes da montanha usando sacos para dejetos humanos. Ele disse que fez videochamadas com autoridades locais para lhes explicar como executar isso. 

      Quando era sirdar da Alpine Ascents International (outra empresa americana de guias de montanha) com sede em Seattle, ele exigia que seus sherpas usassem esses sacos na montanha, mesmo antes de qualquer regra ser estabelecida. “Para que coisas como essa funcionem”, disse ele, “as empresas de expedição precisam ser muito honestas”. 

      Já em 2015, o “The Washington Post” tinha relatado que os alpinistas estavam deixando mais de 12kg de fezes cada um a cada temporada – o que deu ao Everest o péssimo apelido de pico de “bomba-relógio fecal”.

      Para quem ainda tem em mente conquistar a maior montanha do planeta, Arnette incentiva os alpinistas a dar uma olhada nas regras aprovadas antes de viajar. Com o final da temporada 2025 de montanhismo no Everest, Arnette escreveu em seu blog sobre a confirmação de cinco mortes. 

      Já o site “Amazing Nepal”, que está registrado como fonte oficial pelo governo do Nepal, contabilizou quase 850 escaladas bem-sucedidas registradas de aventureiros em 2025 vindos de ambos os lados do pico, ou seja, do Nepal e do Tibete, sendo 722 delas originadas do lado nepalês.   

       

      Sonal Schneider contribuiu com pesquisas adicionais. O texto também foi atualizado pela redação de National Geographic Brasil com novas informações a respeito das regras aprovadas para se escalar o Everest.

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