
Aves tóxicas: no Dia Internacional da Diversidade Biológica, conheça o pássaro que carrega um veneno mais mortal que o cianeto
O pitohui variável, um pássaro venenoso, capturado em uma rede de neblina nos arredores da vila de Wanang, em Papua Nova Guiné, em 2018.
O Dia Internacional da Diversidade Biológica, em 22 de maio, é uma data internacional sancionada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a promoção da biodiversidade.
É importante refletir sobre a natureza em toda a sua diversidade, riqueza e importância e, para isso, a National Geographic apresenta os curiosos pássaros venenosos – aves lindas e muito perigosas – como exemplos da enorme biodiversidade no planeta.
No verão de 1989, Jack Dumbacher era um ornitólogo em treinamento em sua primeira expedição às exuberantes florestas tropicais de Papua Nova Guiné. Em uma tarde chuvosa, ele notou um pássaro incomum com penas pretas e laranjas chamativas emaranhado em suas redes de neblina. Mas quando Dumbacher tentou libertá-lo, o pitohui encapuzado o arranhou.
“São aves do tamanho de um gaio, com garras e bicos afiados”, diz Dumbacher, que instintivamente levou o corte aos lábios. “Minha boca começou a formigar e queimar, e depois ficou dormente, o que durou até a noite.”
Quando Dumbacher consultou seus guias locais, eles acenaram com a cabeça com conhecimento de causa, dizendo-lhe que os aldeões evitavam os “pássaros de lixo”, comendo-os apenas se fossem “esfolados e especialmente preparados”.
Curioso, o então estudante de pós-graduação da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, passou o ano seguinte coletando amostras de pitohui e procurando um químico em seu país que pudesse identificar a origem das sensações peculiares.
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Em 1992, Dumbacher e seus colaboradores anunciaram suas descobertas surpreendentes: os pássaros pitohuis encapuzados carregam a batrachotoxina. Que é uma toxina mais mortal do que o cianeto e está entre as substâncias mais letais do reino animal. É a mesma substância encontrada em certos sapos venenosos em diferentes partes do mundo.
Desde então, pelo menos uma dúzia de outras espécies de aves, dentre as mais de 10500 conhecidas pela ciência, foram identificadas como tóxicas. Alguns membros desse seleto grupo – como a codorna europeia, o galo silvestre norte-americano e a poupa-eurasiática – são encontrados fora da Nova Guiné e contêm toxinas diferentes.
A maioria das aves venenosas, no entanto, é portadora de batrachotoxina e endêmica da segunda maior ilha do mundo, Papua Nova Guiné, incluindo pelo menos cinco outras espécies de pitohui e o ifrit de capa azul.
Mas 35 anos depois da descoberta casual de Dumbacher, muito permanece um mistério sobre os pássaros venenosos da Papua Nova Guiné. “Há muita coisa que não sabemos, desde a ecologia dessas aves até como elas usam a batracotoxina para defesa e de onde a obtêm”, afirma Dumbacher, hoje curador de aves e mamíferos da Academia de Ciências da Califórnia, nos Estados Unidos.
Ele visitou a ilha pela última vez em 2011, e outra equipe de cientistas – liderada pelo ecologista Knud Jønsson, do Museu Sueco de História Natural, e pelo biólogo evolucionista e comunitário Kasun Bodawatta, da Universidade de Copenhague – está dando continuidade à pesquisa de Dumbacher.
Eles já fizeram avanços, identificando duas novas espécies de pássaros tóxicos em 2023, a primeira descoberta em quase duas décadas. Eles planejam visitar Papua Nova Guiné anualmente até 2028.
Eles esperam responder a uma pergunta fundamental: de onde vem a toxina – que se acredita proteger as aves de predadores e parasitas?
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Você é o que você come
Uma teoria sobre a origem desse veneno é a dieta das aves. “Foi sugerido que eles comem os besouros Choresine e é assim que obtêm a toxina”, comenta Jønsson. “Mas, na verdade, não sabemos.”
Dumbacher, que, em 2004, foi o primeiro a descrever como a batracotoxina está presente tanto nas aves quanto nos besouros, não acredita que a toxina tenha origem nos pequenos insetos do tamanho de um arroz.
“Isso porque a maioria das informações sugere que os besouros não conseguem produzir esses alcaloides esteroidais”, diz ele. “Portanto, é muito possível que os besouros estejam obtendo a toxina de alguma outra fonte, como ácaros do solo ou até mesmo de uma planta.”
Para rastrear a origem da batracotoxina, os pesquisadores planejam coletar pássaros venenosos e comparar o conteúdo de seus estômagos com insetos capturados em armadilhas próximas. “A ideia é tentar identificar possíveis presas que tenham a toxina”, explica Jønsson. “É muito parecido com procurar uma agulha em um palheiro, mas esse é o primeiro passo que podemos dar.”
Eles também se uniram a Christine Beemelmanns, química da Universidade de Saarland, na Alemanha, para ajudar a identificar a batrachotoxina e toxinas molecularmente semelhantes nas amostras já coletadas.
Os testes demonstraram que os pássaros venenosos contêm uma mistura de derivados tóxicos — o laboratório de Beemelmanns identificou seis até o momento – que podem variar em concentração entre indivíduos e espécies.

O pitohui encapuzado é uma das várias aves venenosas que foram documentadas em Papua Nova Guiné. Embora aves venenosas tenham sido documentadas também na América do Norte e na Europa, a maioria das aves venenosas conhecidas pela ciência é encontrada na região do Pacífico Sul.
Como os pássaros permanecem imunes ao veneno?
Outro mistério persistente é como as aves se protegem da toxina mortal que carregam.
A batracotoxina se liga aos canais de íons de sódio nas células nervosas, musculares e cardíacas, resultando em sintomas como dormência, convulsões, paralisia e até mesmo morte em quem tem contato com o veneno. “Ela se fixa nesses canais e os mantém abertos, de modo que os nervos continuam a se contrair”, diz Jønsson.
As aves venenosas contêm muito menos toxina do que o sapo venenoso dourado, o Phyllobates terribilis, que carrega batracotoxina suficiente para matar 10 homens adultos. O pitohui encapuzado – que é a espécie de ave mais tóxica – não é letal quando manuseado ou consumido.
A teoria de longa data que explica como as aves “não estão se matando” é que elas, assim como os sapos super venenosos, contêm mutações em seus canais de sódio, o que impede a ligação da toxina, diz Daniel Minor, biofísico da Universidade da Califórnia (Estados Unidos), em São Francisco, que não está envolvido nas próximas expedições de pesquisa de Jønsson e Bodawatta.
A mesma característica é encontrada no peixe baiacu fugu, no polvo de anéis azuis e em outros animais venenosos que permanecem imunes às toxinas que carregam.
De fato, quando Jønsson e seus colaboradores compararam os genomas de seis espécies de pássaros tóxicos com seus primos não tóxicos dentro das mesmas famílias, eles descobriram que os pássaros venenosos continham várias mutações em um gene que codifica um canal de sódio específico.
No entanto, quando a equipe de Minor realizou testes eletrofisiológicos em genes clonados do pitohui variável do sul em um conjunto separado de experimentos, eles “ficaram perturbados” ao descobrir que os canais de sódio permaneciam sensíveis à batracotoxina, apesar de suas mutações.
Minor agora acredita que a resistência dos pássaros está em uma proteína ainda não identificada que atua como uma “esponja de toxina”, ligando-se à batracotoxina e sequestrando-a. O trabalho de Minor e seus colegas com a saxitoxina, uma toxina de molécula pequena que se liga aos canais de sódio, proporcionou essa percepção.
“Nosso laboratório demonstrou que a saxifilina, uma proteína encontrada naturalmente em sapos venenosos, pode se ligar à saxitoxina com alta afinidade”, explica ele. “Portanto, talvez seja o mesmo com a batracotoxina.”
Jønsson e Bodawatta acham que os dois mecanismos podem ser complementares. “De qualquer forma, as aves precisam transportar a batracotoxina do intestino para a pele”, comenta Bodawatta. “Portanto, elas devem ter uma proteína transportadora que facilite isso.”
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Existem outros pássaros venenosos?
Os cientistas estão interessados em saber se existem mais aves tóxicas na natureza.
Jønsson acha que isso é muito provável. “Os pássaros venenosos da Papua Nova Guiné pertencem à superfamília de pássaros Corvides, que compreende cerca de 700 espécies em todo o mundo”, diz ele. A Nova Guiné abriga 140 delas, e sua equipe estudou até agora apenas um quinto delas.
A partir de novembro deste ano, sua equipe coletará “o maior número possível de amostras de Corvídeos” de diferentes partes da ilha e fará uma triagem para detectar a presença de batracotoxina. Eles também planejam sequenciar pelo menos um indivíduo por espécie para identificar mutações no canal de sódio.
Um conjunto de dados genômicos mais abrangente também permitirá que os cientistas identifiquem possíveis proteínas da toxina da esponja, acrescenta Bodawatta.
De forma mais ampla, os pesquisadores querem estudar “a evolução convergente superlegal e maluca” que permitiu essa resistência especial à toxina em sapos e aves, bem como em espécies de aves não relacionadas na Papua Nova Guiné e em outras partes do mundo, diz Bodawatta.
“Compreender as adaptações convergentes por seleção natural é um objetivo central da biologia evolutiva”, acrescenta Jønsson. Quanto mais os cientistas aprenderem sobre o que existe, mais perguntas eles poderão fazer sobre o motivo de sua existência.
“Talvez em dois ou três anos tenhamos novos insights para compartilhar”, afirma Bodawatta. “Este é apenas o começo.”
