
Descoberta inédita na Amazônia: queda de árvore dá pistas sobre uma antiga civilização
A arqueóloga Geórgea Holanda trabalha em uma das urnas funerárias recuperadas na Amazônia brasileira. Holanda e seus colegas dizem que as urnas encontradas são diferentes e não correspondem às tradições de cerâmica conhecidas anteriormente na área.
Quando uma árvore enorme tombou nas várzeas de Fonte Boa, uma região da Amazônia brasileira, os pescadores locais notaram algo estranho: as raízes haviam erguido dois vasos de cerâmica gigantes acima do solo. Ninguém sabia o que eram ou quem os havia enterrado.
Em junho de 2025, o governo brasileiro anunciou que os arqueólogos haviam identificado os vasos como urnas funerárias – possivelmente milenares – de grupos indígenas que habitavam a região antes da chegada dos portugueses ao Brasil, há cerca de mais de 500 anos.
As escavações revelaram sete urnas, algumas fragmentadas, emaranhadas entre as raízes da grande árvore, contendo ossos humanos. A maior delas tinha quase 1 metro de diâmetro e pesava quase 350 Kg, diz Márcio Amaral, arqueólogo do Instituto Mamirauá em Tefé, no estado brasileiro do Amazonas, que ajudou a liderar as escavações.
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“Precisamos de um dia inteiro para soltar essa urna grande das raízes e de seis homens para retirá-la de lá”, acrescenta.
Retirar as urnas do solo e transportá-las para o laboratório de pesquisa do Mamirauá em Tefé para estudo foi um processo complexo. Walfredo Cerqueira, o líder comunitário que mobilizou seus colegas pescadores para ajudar nas escavações, relembra a experiência inusitada:
“Achávamos que chegaríamos lá com enxadas e moveríamos as coisas com facilidade, mas pelo que eu tinha visto na TV sobre o trabalho dos arqueólogos, sabia que seria um trabalho lento.”
A árvore caiu em uma área conhecida como Lago da Cochila, um sítio arqueológico na região do Médio Solimões, na Amazônia. É uma das mais de 70 planícies artificiais da região, construídas há cerca de 2 mil anos por grupos indígenas para evitar inundações durante a estação de águas altas do rio.
“Considerando o pouco que sabemos sobre [o passado] dessa região e a dificuldade de chegar lá, essa é realmente uma descoberta sem precedentes”, afirma Karen Marinho, arqueóloga da Universidade Federal do Oeste do Pará que não participou das escavações.

Em outubro de 2024, moradores da comunidade de Amandarubinha viram a árvore derrubada e entraram em contato com um padre local, que procurou o Instituto Mamirauá, a mais de 240 Km de distância. Com a ajuda da comunidade, os arqueólogos do instituto escavaram as urnas no início deste ano.
As urnas não correspondem a artefatos encontrados anteriormente nas proximidades da região e, por enquanto, levantam mais perguntas do que respostas, criando um novo mistério.
O que sabemos sobre a cerâmica amazônica primitiva?
A cerâmica tem uma longa história na Amazônia e é um dos poucos tipos de artefatos que sobrevivem em um ambiente úmido e quente, só que não é ideal para a preservação arqueológica.

Arqueólogos do Instituto Mamirauá trabalharam junto com membros da comunidade indígena para escavar as urnas.

Durante todo o trabalho de escavação, os arqueólogos do Instituto Mamirauá tiveram a colaboração de vários membros da comunidade local para retirar as urnas.
As primeiras ocupações humanas conhecidas da região amazônica criaram cerâmicas na tradição Pocó-Açutuba, datadas entre 1500 a.C. e 200 d.C. Os recipientes de cerâmica dessa tradição são ricamente decorados com diferentes tipos de padrões esculpidos.
Em seguida, veio a tradição Borda Incisa, caracterizada principalmente por cortes ao longo das bordas de vasos e recipientes de cerâmica. Finalmente, entre os séculos 5 e 16, a tradição da cerâmica policromada incorporou corantes naturais de diferentes cores, especialmente marrom, vermelho, preto e laranja sobre um fundo branco ou cinza.
Só que as urnas recém-descobertas não parecem pertencer a nenhuma das tradições cerâmicas conhecidas no Médio Solimões ou na Amazônia brasileira em geral. “Esse é um tipo do qual ainda não temos registros”, relata Amaral.
A ausência de tampas de cerâmica diferencia as novas descobertas do ponto de vista artístico. Essas urnas funerárias também são mais arredondadas do que as produzidas em estilos conhecidos, observa Anne Rapp Py-Daniel, arqueóloga da UFOPA que não participou da pesquisa.
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Como os antigos povos indígenas enterravam seus mortos?
A riqueza do artesanato que transforma essas urnas em peças de arte diz muito sobre como as antigas comunidades indígenas se relacionavam com a morte na Amazônia. Para esses grupos, “a morte é um processo, não um momento”, observa Py-Daniel. É outro rito de passagem que envolve esforço e dedicação de todo o grupo, especialmente se o membro falecido tinha um papel importante nele.

Algumas das urnas tinham até um metro de largura e exigiram um esforço extra para removê-las do sistema radicular da árvore. Na foto, vemos a equipe trabalhando para remover uma das urnas.
A colocação de ossos em recipientes de cerâmica, explica Py-Daniel, teria sido parte de uma segunda etapa do processo funerário. Primeiro, o falecido deve passar por um ritual para remover a carne, por meio de enterro, cremação ou submersão em um rio – onde o corpo é envolvido em uma rede trançada que permite que os peixes se alimentem dele.
Em seguida, os ossos são cuidadosamente coletados e organizados para, em outro ritual, serem colocados dentro da urna. “Os grupos indígenas que não tiveram suas tradições obliteradas pela presença dos missionários ainda seguem [total ou parcialmente] esse ritual”, explica Py-Daniel.
Em toda a Amazônia, muitos grupos enterravam esses vasos com seus mortos embaixo de suas casas (e alguns ainda o fazem), diz a arqueóloga Geórgea Holanda, que liderou as escavações com Amaral. “Nas redes sociais, muitas pessoas nos perguntam como uma árvore pode ter crescido em cima das urnas”, diz ela. “A árvore provavelmente cresceu depois que as pessoas que viviam naquela região foram embora.”
À medida que a árvore crescia, suas raízes foram se introduzindo nos vasos, possivelmente atraídas pelos nutrientes dos ossos, acrescenta Holanda. Embora a idade exata da árvore permaneça desconhecida, seu tamanho sugere que ela pode ter séculos de idade, e os pesquisadores suspeitam que os vasos sejam ainda mais antigos.
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Arqueologia voltada para a comunidade
Por enquanto, a idade exata e a origem das urnas funerárias permanecem um mistério. A presença de ossos de peixes e tartarugas ao redor de alguns dos fragmentos de cerâmica também levanta questões. “Ainda temos que descobrir o que são esses restos – se eles faziam parte de um ritual associado”, diz Amaral.
Os pesquisadores do Mamirauá estão atualmente limpando e escavando sedimentos dentro das urnas enquanto procuram financiamento para estudar o material. Por fim, eles esperam fazer a datação por carbono de fragmentos de ossos e carvão para obter uma estimativa de idade mais precisa. “Tudo dependerá de financiamento e das parcerias que conseguirmos”, enfatiza Holanda.
Mesmo com essas incógnitas, Amaral e Holanda acham que o aspecto mais importante da descoberta foi o profundo envolvimento dos moradores das aldeias indígenas Arumandubinha e Arará, que ajudaram os arqueólogos a planejar cada etapa do processo. “A demanda veio deles, pois queriam saber o que eram esses artefatos, caso contrário, nunca saberíamos sobre as urnas”, afirma Amaral.
Os membros da comunidade ajudaram a construir andaimes especiais para remover as urnas sem causar mais danos e orientaram os pesquisadores sobre o melhor momento para a escavação. “Tudo isso teria sido impossível sem eles”, conclui Holanda.
