Por que a sabedoria dos povos indígenas é relevante para os cuidados com a Terra e a segurança alimentar

Apesar das contribuições desses povos, existem algumas situações que os ameaçam e comprometem a reprodução de seus conhecimentos.

Por Redação National Geographic Brasil
Publicado 21 de abr. de 2023, 18:00 BRT
Um fazendeiro segura milho, um alimento básico da dieta de Nicoyan. Nicoya, Província de Guanacaste, Costa ...

Um fazendeiro segura milho, um alimento básico da dieta de Nicoyan. Nicoya, Província de Guanacaste, Costa Rica.

Foto de NICOLE FRANCO

Os povos indígenas estão presentes em todo o mundo, desde a floresta tropical amazônica até as montanhas. Seus territórios cobrem 28% da superfície terrestre e abrigam 80% da biodiversidade mundial, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Isto se deve a vários fatores ligados ao seu modo de vida, costumes e tradições.

Quem são os povos indígenas?

Segundo a FAO, é difícil estabelecer uma definição única a nível internacional, dada a diversidade entre as regiões. Da mesma forma, ao falar dos povos indígenas, a organização é guiada por critérios comuns, tais como prioridade no tempo de ocupação e uso de um determinado território e a perpetuação voluntária da distinção cultural (que pode incluir aspectos de língua, organização social, religião e modos de produção, entre outros).

Por sua vez, diz a agência, os povos indígenas se reconhecem através de uma consciência de sua própria identidade e a de outros grupos. Também é comum uma experiência de subjugação, marginalização, despossessão, exclusão ou discriminação, quer essas condições persistam ou não.

Mulheres Quechua das Terras Altas conduzem vicunhas selvagens para currais durante o Gran Chaccu, um encontro anual. Picotani, Puno, Peru.

Foto de Beth Wald

A organização estima que, atualmente, existam 476 milhões de povos indígenas em 90 países, e que eles pertencem a 5 mil povos e grupos linguísticos diferentes. No total, eles representam 6,2% da população mundial. A maior concentração está na Ásia (70,5%), seguida pela África (16,3%) e pela América Latina (11,5%). 

Bolívia, Guatemala, México e Peru têm as maiores populações indígenas da região das Américas, de acordo com uma publicação da FAO de 2021 intitulada Povos Indígenas e Afrodescendentes e Mudança Climática na América Latina.

Os povos indígenas têm potencial para mitigar a mudança climática e garantir a soberania alimentar

A FAO identifica os povos indígenas e afro-descendentes (povos e pessoas descendentes da diáspora africana) como dois dos grupos rurais com maior potencial para contribuir para a mitigação da mudança climática. De fato, seus territórios são o lar da maior riqueza natural da América do Sul, e suas práticas tradicionais de manejo são consideradas os melhores guardiões da biodiversidade. 

O documento de 2021 refere-se a um estudo conjunto da Iniciativa de Direitos e Recursos (RRI, na sigla em inglês) e do World Resources Institute (WRI), que concluiu que as florestas manejadas por essas comunidades sofrem menos desmatamento e acumulam mais carbono.

Para ilustrar o quanto essas comunidades preservam seus territórios, basta consultar um documento que a MapBiomas, uma iniciativa da Rede Amazônica de Informações Socioambientais Geo-referenciadas (RAISG), tornou público em 2020.

Este documento destaca que, entre 1985 e 2020, 90% do desmatamento na Amazônia ocorreu fora das terras ocupadas pelas comunidades nativas ou outras áreas protegidas. Apenas 1,2% (2,9 milhões de hectares) de sua vegetação nativa foram perdidos desde os anos 1980.

Embora não seja possível homogeneizar essas comunidades, por serem povos com culturas e territórios diferentes, há alguns aspectos comuns que poderiam explicar como elas conseguem proteger o meio ambiente.

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    À esquerda: No alto:

    Uma fitoterapeuta mexicana da etnia indígena seri leva para casa lavanda, visco e senna do deserto.

    À direita: Acima:

    Plantas colhidas pela indígena seri em Punta Chueca, estado de Sonora, México.

    fotos de Lynn Johnson

    Entre elas, Mauricio Mireles, oficial da FAO para colaboração com os povos indígenas e afrodescendentes na América Latina, menciona a concepção holística do mundo e o vínculo especial destes povos com o meio ambiente.

    "Quando olhamos para seu modo de vida, vemos que existe uma relação integral onde alguns interesses não prevalecem sobre outros: suas necessidades monetárias não prevalecem sobre o direito daquela árvore de existir", explica Mireles.

    Ao mesmo tempo, continua o especialista da FAO, há uma relação espiritual com a natureza que inspira sua preservação e respeito.

    As decisões de gestão dos ecossistemas são frequentemente sustentadas por cosmogonias complexas (conjuntos de crenças espirituais, rituais, práticas religiosas e costumes), de acordo com o Livro Branco/Wiphala sobre Sistemas de Alimentação dos Povos Indígenas (2021), preparado por representantes e especialistas das comunidades indígenas, cientistas, pesquisadores e funcionários da ONU.

    Muitos povos indígenas têm uma perspectiva biocêntrica, ou seja, reconhecem uma conexão sagrada em todos os seres vivos e compreendem que os seres humanos são um elemento do ecossistema e, portanto, merecem o mesmo respeito que todas as outras criaturas.

    Na verdade, o documento continua, a Terra é reconhecida como uma entidade com direitos próprios, como é o caso da Mãe Terra (Pachamama) na Bolívia.

    Além disso, Mireles salienta que entre estas comunidades "não houve nenhum impulso para capitalizar tudo para outros benefícios". “Há um nível de convivência no qual não há necessidade de dominação", acrescenta.

    Jeferson Straatmann, coordenador de Economia Sócio-biodiversitária do Instituto Socioambiental (ISA) no Brasil, reconhece que os modos de produção dos indígenas também são proeminentes.

    Um camponês oferece palha de milho e uma mistura de xarope de milho para agradecer aos deuses por uma boa colheita. San Juan Bautista Sahcabchen, Campeche, México.

    Foto de Nadia Shira Cohen

    "Ao contrário da monocultura, os alimentos produzidos pelos povos indígenas são produzidos em diversidade, e o excedente é vendido. Este princípio de produção respeita os ciclos da natureza e fornece uma série de serviços ambientais que resultam em serviços de conservação e impacto sistêmico", diz Straatmann.

    Dentre os serviços ambientais gerados pelas diversas formas de produção em cada comunidade, o coordenador do ISA menciona: polinização, regulação climática, cuidado da água e do solo e sequestro de carbono.

    Consequentemente, acrescenta o especialista, sua economia é regenerativa e circular: "Tudo o que produzem volta ao solo, é decomposto e convertido em fertilizante para ser cultivado novamente".

    A resiliência também é um fator relevante. "Os povos indígenas observam de perto e se adaptam às mudanças no ambiente natural, e desenvolvem seus conhecimentos e práticas tradicionais para manter a reciprocidade e o equilíbrio", descreve o Livro Branco/Wiphala.

    Alfredo Rojas Flores, nativo da comunidade Shipibo-Konibo, na Amazônia peruana, pescador, agricultor e presidente da Associação de Pescadores Artesanais Shipibo (Aspash), concorda que os povos indígenas são os guardiões da natureza.

    Ele diz à National Geographic que, na floresta, ele e seus vizinhos possuem plantas medicinais de cura, assim como recursos que possibilitam a pesca, a caça e o artesanato em bases de subsistência e, em menor escala, comerciais.

    O nativo Shipibo-Konibo diz que foram seus avós que lhe transmitiram os conhecimentos ancestrais. "O cuidado com o meio ambiente é algo que aprendemos quando crianças nas comunidades. Ele é transmitido pelos mais velhos, os líderes de uma perspectiva cultural".

    As comunidades Shipibo-Konibo estão localizadas nos departamentos de Ucayali, Madre de Dios, Loreto e Huánuco no Peru. Contam com uma população estimada em 32 964 habitantes, um dos mais numerosos povos da Amazônia peruana, segundo o Banco de Dados de Povos Indígenas ou Originais do Ministério da Cultura peruano.

    Como diz Rojas Flores, sua comunidade tem uma visão de conservação e protege a floresta ao seu redor. Entre os serviços que oferece ao mundo, os Shipibo são reconhecidos pela venda de créditos de carbono e pela manutenção de ar puro, além dos numerosos recursos alimentares que vêm de suas terras.

    Mulheres alinham as redes em fila e trazem os peixes para as redes. Mirinzal, Maranhão, Brasil.

    Foto de Tyrone Turner

    No Brasil, Straatman menciona as pessoas que vivem em comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, um conjunto de cerca de 80 comunidades caiçaras no litoral sul de São Paulo, formadas por 2456 famílias.

    Segundo o coordenador do ISA, os quilombolas fornecem alimentos produzidos através de técnicas agrícolas tradicionais para escolas de todo o estado de São Paulo e para pessoas em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar.

    O que podemos aprender com os povos indígenas

    Por meio do Livro Branco/Wiphala, a FAO deixa claro que o atual sistema alimentar mundial é insustentável. Os números do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), presentes no relatório especial de 2019 chamado Climate Change and Land, mostram que até 37% do total de emissões de gases de efeito estufa (GEE) são atribuíveis ao sistema alimentar, que inclui agricultura e uso da terra, armazenamento, transporte, embalagem, processamento, varejo e consumo final.

    "Se não forem reduzidos, nossos sistemas alimentares atuais alterarão radicalmente ecossistemas, ambientes, costas, topos de montanhas, geleiras, corpos de água e padrões climáticos, com consequências para o bem-estar humano e a vida na Terra", diz a organização.

    Diante de tal cenário, a organização enfatiza a necessidade de adotar sistemas alimentares mais eficientes, sustentáveis, resilientes e equitativos. E os povos indígenas podem ter a resposta, pois não só são capazes de fornecer segurança alimentar e nutricional, mas também restaurar ecossistemas e conservar a diversidade genética.

    Pesquisas de 2009 do Centro para a Nutrição dos Povos Indígenas e o Meio Ambiente (Cine, na sigla em inglês) citadas pela FAO mostram que os alimentos tradicionais podem atender a quase 100% das necessidades energéticas da dieta adulta. Este é o caso dos povos Ticuna, Cocama e Yagua da Colômbia, que obtêm cerca de 80% de suas proteínas das atividades de pesca selvagem.

    "Stevia (Stevia rebaudiana), chia (Salvia hispanica), cañihua (Chenopodium pallidicaule), kiwicha (Amaranthus caudatus), olluco, maca (Lepidium meyenii), bagas de goji (Lycium barbarum), guaraná (Paullinia cupana), palmeira sato (Cycas revoluta), saichaichi (Plukenetia volubilisaçaí (Euterpe oleracea), yarsagumba (Ophiocordyceps sinensis), tara (Alpinia nigra), flores mahua (Madhuca latifolia) ou quinoa (Chenopodium quinoa) são alguns exemplos de alimentos dos povos indígenas que ampliaram a base alimentar global", informa a publicação da FAO.

    (Veja exemplos: Na foz do Amazonas, açaí gera renda e protege a floresta)

    Quais são as principais ameaças enfrentadas pelos povos indígenas?

    "Eles não são reconhecidos como protagonistas e inovadores, e é muito difícil para eles competirem com a economia perversa da soja, pecuária e agrotóxicos subsidiados que matam e destroem", destaca Straatman.

    "Quando seus territórios tradicionais não são garantidos por lei, a pressão do agronegócio é muito grande", enfatiza o especialista.

    Na mesma linha, Mireles comenta que há um aumento da violência contra os povos indígenas na forma de invasões de terras, incêndios e assassinatos. "Evidentemente, há uma expansão de diferentes setores que procuram entrar nesses territórios".

    Quilombolas dançam durante festa. Itapecuru Mirim, Maranhão, Brasil.

    Foto de Tyrone Turner

    Ao mesmo tempo, os jovens indígenas enfrentam novos desafios como desemprego, discriminação ou exclusão social, forçando-os a buscar outras opções fora de suas comunidades ou a migrar para as cidades. A isto se acrescenta a segregação no caso das mulheres, diz o especialista da FAO. Isto gera um risco de interromper o ciclo de transferência de conhecimentos ancestrais.

    As mudanças dietéticas também estão ocorrendo nessas populações, pois elas experimentam rápidas mudanças socioeconômicas, culturais e ecológicas associadas à globalização e à modernização.

    Como as sociedades podem abraçar o conhecimento indígena

    O especialista da FAO reconhece que o apoio necessário dos Estados e governos poderia abordar os níveis de insegurança alimentar, pobreza e exclusão com os quais os povos indígenas vivem.

    Ao mesmo tempo, políticas públicas dirigidas a tais grupos lhes permitiriam trazer seus conhecimentos para as sociedades e economias hegemônicas, conta Adriana Rodrigues, assessora de políticas públicas da ISA e especialista em sistemas agrícolas tradicionais, em entrevista à National Geographic.

    "Para que essas políticas públicas sejam eficazes, é necessário romper com as estruturas racistas que existem em nossa sociedade de não reconhecer que o que essas comunidades fazem, o conhecimento tradicional delas, é também um tipo de tecnologia", enfatiza Rodrigues.

    O que a assessora do ISA afirma está em consonância com o que está expresso no Livro Branco/Wiphala: "O conhecimento científico se baseia na noção de um único mundo, enquanto o conhecimento tradicional dos povos indígenas propõe um conjunto de mundos locais dentro de um planeta compartilhado".

    Para Straatman, a conservação e a promoção destes modos de vida e do meio ambiente são possíveis através de uma conjunção entre o conhecimento tradicional e a garantia dos direitos territoriais.

    Por sua vez, Mireles enfatiza que a transmissão de conhecimento não deve permanecer uma mera extração de sabedoria, mas sim que os povos indígenas devem ter um espaço na tomada de decisões e ser compensados por seus serviços ecossistêmicos. Para isso, deve ser levando em conta o princípio do Consentimento Livre, Prévio e Informado (FPIC, na sigla em inglês), que permite às comunidades locais dar ou não apoio aos programas de investimento e desenvolvimento propostos que possam afetar seus direitos, acesso a terras, territórios e recursos, e sua subsistência.

    "Não se trata de dissociar o conhecimento ancestral e tradicional dos povos, mas de dar-lhes os elementos, as ferramentas e compensações justas em termos de proteção de seus territórios", insiste o funcionário da FAO.

    "Trata-se de um processo de aprendizagem. Não é muito complexo ou impossível. Temos que abrir nossos ouvidos para realmente escutar, interiorizar e fazer mais mudanças estruturais em termos de políticas e sociedade", conclui Straatman.

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