Conheça os novos parques marinhos do Chile

Uma série de expedições aos pontos mais remotos das águas territoriais do país revelam maravilhas do mar que agora estão preservadas

Por Enric Sala, Alex Muñoz
fotos de Enric Sala
Publicado 29 de nov. de 2017, 18:08 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Uma medusa move-se entre um bosque de algas gigantes perto do Cabo Horn. Os bosques de ...
Uma medusa move-se entre um bosque de algas gigantes perto do Cabo Horn. Os bosques de kelp ao redor das ilhas e costões no extremo sul do Chile são de tal modo densos que podem ser vistos em fotos feitas por satélites.
Foto de Enric Sala

Esta reportagem está publicada na edição de Dezembro de 2017 da revista National Geographic, publicada pela ContentStuff. Garanta já seu exemplar!

 

De longe, a base dos penhascos parecia bordada de rochas pardacentas. Mas, ao chegarmos perto, sob um céu de nuvens dramáticas, era evidente que algumas dessas rochas mais escuras estavam se movendo.

Com o barco fundeado a 100 metros da costa, vimos que não eram rochas, e sim mamíferos – lobos-marinhos-de-juan-fernández. Esse animal é um exemplo único de conservação marinha. Um século atrás, a espécie quase se extinguiu devido à caça excessiva. Hoje, a população é saudável e vem crescendo por aqui, na Ilha Robinson Crusoé, parte do Arquipélago Juan Fernández.

Por outro lado, como é possível que o Chile, um país no qual a pesca sempre foi uma atividade muito intensa, abrigue um exemplo tão notável de recuperação da fauna marinha?

O Chile é um país alongado, com a espinha vertebral dos Andes marcando, a leste, a divisa com a Argentina, e um território que desemboca, a oeste, no Oceano Pacífico, formando um litoral que se estende por mais de 4 mil quilômetros. A partir desse litoral, no rumo oeste, o Chile expande a sua superfície pelo oceano numa área de 3,6 milhões de quilômetros quadrados, quase cinco vezes maior que a sua extensão terrestre.

Em 2010, o Chile estava em sétimo lugar entre os países que mais capturavam animais marinhas, graças à pesca industrial de espécies como a anchoveta, o xixarro e a sardinha-do-pacífico. Mas a exploração cada vez mais intensa a partir da década de 1960 superou os limites da sustentabilidade. De acordo com a Subsecretaria de Pesca do Chile, das 25 áreas de pesca em águas territoriais chilenas, sete estão sendo exploradas plenamente, ao passo que outras seis exibem sinais de exploração excessiva – e nove delas já se esgotaram. Ou seja, mais da metade das áreas de pesca chilenas se tornou insustentável, levando consigo espécies de alto valor comercial, como a merluza-austral, a merluza-negra e o xixarro.

No Mares Intocados, um projeto da National Geographic, buscamos os derradeiros locais selvagens nos oceanos, referências sobre como eram os mares de 500 anos atrás, antes que fossem esvaziados de espécies de grande porte por meio da pesca industrial. O plano é compilar uma lista de lugares que possam abrigar ecossistemas marinhos em boas condições de saúde. E, em função da sua longa história de exploração da pesca, nem de longe o Chile parecia ser candidato a contribuir com um desses locais intocados.

Para a nossa surpresa, contudo, um pequeno ponto verde surge no nosso mapa, a 850 quilômetros do norte do Chile: as Ilhas Desventuradas. Numa dessas ilhas, a San Félix, há uma pequena e estratégica base da Marinha. A outra ilha, a San Ambrosio, está desabitada, exceto por breves períodos, quando recebe um grupo de pescadores de Juan Fernández, que, desde 1901, lá se instalam, todos os anos, para a pesca da lagosta.

Em fevereiro de 2013, realizamos uma expedição às Desventuradas, em conjunto com a organização Oceana, com o objetivo de estudar o leito oceânico e de produzir um documentário. A Marinha do Chile nos autorizou a ir a San Ambrosio, mas não pudemos visitar San Félix, zona militar.

Ao chegarmos à San Ambrosio, após dois dias de travessia a partir de Antofagasta, descemos para visitar a cabana dos pescadores, erguida na única plataforma rochosa com mais de 10 metros quadrados em toda a ilha. Ela estava vazia. Ao redor, viam-se enormes armadilhas para a captura de lagostas, construídas com ripas de madeira e arame. O diâmetro do orifício pelo qual as lagostas entravam nas armadilhas era tão largo que podíamos enfiar a cabeça ali! Se as armadilhas eram assim, quão grandes seriam as lagostas?

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    Foto de MAPA DA NATIONAL GEOGRAPHIC EN ESPAÑOL. FONTE: GOVERNO DO CHILE

    Para saber, fizemos a primeira imersão com o submersível DeepSee. O nosso barco, o Argo, ficou ancorado na face norte da ilha. Os paredões verticais ofereciam o único local resguardado contra as fortes e profundas correntezas vindas do sudoeste. A equipe nos fechou na bolha de acrílico e nos rebocou até um ponto a 100 metros da costa. Ali descemos até 110 metros de profundidade, em que o azul-escuro se transforma num mosaico de luzes e sombras. De repente, notamos um buraco na rocha de onde emergiam duas antenas. Acionamos dois lasers que emitem pontos vermelhos a uma distância exata de 30 centímetros, o que nos permite medir os organismos sob a água. A lagosta media 54 centímetros – sem dúvida, a maior que já havíamos visto na vida.

    Nas duas semanas seguintes, descobrimos um mundo fervilhante de vida sob o mar. Cardumes de peixes, que jamais tinham sido relatados nas ilhas chilenas, nos rodeavam toda vez em que pulávamos na água: de pampanitos prateados com aletas amarelas a xixarros de 1,5 metro, tão musculosos que mais parecem torpedos. Tais peixes formam uma comunidade única. Os estudos mostraram que 96% dos peixes observados são de espécies que só se encontram nas Desventuradas e em Juan Fernández.

    Depois da expedição, compartilhamos os nossos achados com as autoridades do Chile e os moradores de Juan Fernández. Meses depois, a comunidade propôs ao governo a criação de uma reserva englobando a área em torno das ilhas. E, em setembro de 2014, o chanceler Heraldo Muñoz e o ministro da Defesa José Antonio Gómez viajaram até a San Félix em um avião da Marinha. Durante o voo, eles viram o documentário que rodamos. Depois da visita, o chanceler comentou: “Vimos coisas que não se veem em outro lugar [...] e temos de protegê-las”.

    “Descobrimos um mundo fervilhante de vida sob o mar. Cardumes de peixes, que jamais tinham sido relatados nas ilhas chilenas, nos rodeavam toda vez em que pulávamos na água.”

    por Enric Sala e Alex Muñoz

    Depois da expedição, compartilhamos os nossos achados com as autoridades do Chile e os moradores de Juan Fernández. Meses depois, a comunidade propôs ao governo a criação de uma reserva englobando a área em torno das ilhas. E, em setembro de 2014, o chanceler Heraldo Muñoz e o ministro da Defesa José Antonio Gómez viajaram até a San Félix em um avião da Marinha. Durante o voo, eles viram o documentário que rodamos. Depois da visita, o chanceler comentou: “Vimos coisas que não se veem em outro lugar [...] e temos de protegê-las”.

    Assim, em 5 de outubro de 2015, a presidente Michelle Bachelet anunciou a criação do Parque Marinho Nazca-Desventuradas. Com 305 mil quilômetros quadrados, a reserva é a maior área protegida do continente americano. Com essa única iniciativa, o Chile aumentou de 4% para 12% a proporção das suas águas territoriais contidas em reservas marinhas, nas quais não se permite nenhuma atividade extrativa. Logo nos ocorreu uma pergunta: não haveria outros lugares intocados em águas chilenas? A região mais propícia para identificar um local assim era a do Estreito de Magalhães, no extremo sul do continente.

    Magalhães é uma terra remota e quase despovoada, com cadeias montanhosas que adentram o “mar do fim do mundo” como se fossem dedos tentaculares, em uma profusão de fiordes e baías. Todos os elementos necessários para a preservação de ambientes marinhos estão presentes ali. Após discutir a ideia com o nosso sócio, Ted Waitt, ficou decidido que faríamos uma expedição com o Plan B, o barco de pesquisa da Waitt Foundation, para explorar os arredores do Cabo Horn. A Marinha do Chile nos ofereceu ajuda para a organização. A fúria do mar na área já provocou o naufrágio de mais de mil barcos e cobrou a vida de 15 mil pessoas. Para a nossa sorte, porém, o temido Horn nos recebeu, excepcionalmente, com ventos suaves e mar calmo.

    Chegamos ao cabo antes do amanhecer e lançamos âncora diante do farol que tem sido um sinal de esperança para tantos marinheiros. Saltamos na água, ali mesmo no cabo, com um sorriso que logo deu lugar ao espanto quando as bolhas nos deixaram ver melhor. Estávamos no dossel de um bosque submerso, em meio a colunas de huiros – algas laminariales gigantescas, conhecidas como kelp – com 15 metros de altura. O leito do mar estava recoberto de invertebrados: estrelas-do-mar, caracóis, santolas-chilenas.

    Avançamos até o ponto meridional mais extremo do Chile, as Ilhas Diego Ramírez, 60 milhas náuticas a sudoeste do Cabo Horn. Depois da travessia noturna, nos reunimos na ponte de comando às 6 da manhã. O dia amanheceu calmo, algo muito raro nessa região inóspita. A enseada logo embaixo do farol de Diego Ramírez era um tapete pardacento, tal a espessura da camada de algas. A ligeira movimentação da água na superfície abria buracos no dossel pelos quais se filtravam os raios solares, criando um efeito caleidoscópico e catedralesco. No interior do bosque, o krill – os pequenos crustáceos que estão na base da cadeia alimentar local – buscava se proteger de incontáveis predadores: peixes, pinguins, albatrozes, petréis, baleias e lobos-marinhos.

    Conversamos com os marinheiros que cuidam do farol. No ponto culminante da ilha, dezenas de pintinhos de albatroz-de-cabeça-cinzenta nos encaram, perplexos, cada qual acomodado em um ninho de barro e ervas. Em fevereiro, os filhotes têm quase meio metro de altura e estão cobertos de uma plumagem branca e algodoada. No céu, milhares de albatrozes nos sobrevoam. Quando voltamos à região do Cabo Horn, já estamos convencidos de que as Ilhas Diego Ramírez mereciam ser protegidas, com urgência.

    Dependemos dos oceanos para sobreviver. Precisamos protegê-los
    A equipe da Pristine Seas, iniciativa da National Geographic Society, marca presença no 4º Congresso Internacional de Áreas Marinhas Protegidas

    Ao redor do Cabo Horn, cada mergulho é uma surpresa. Ao sul de uma das ilhas, cujo nome é melhor manter em sigilo, submergimos no matagal de huiro e de repente ficamos com a impressão de que o fundo do mar se movia. Ao mergulharmos mais fundo, nos demos conta de que o leito do mar estava coberto por milhares e milhares de centollones, os caranguejos Paralomis granulosa, de corpo triangular e rechonchudo, do tamanho de um prato de sobremesa. Jamais, nos milhares de mergulhos que fizemos ao redor do mundo, tínhamos presenciado tal espetáculo.

    O Chile nos surpreendeu com essas regiões, mais preservadas do que havíamos imaginado. E o empenho dos moradores de Juan Fernández, em prol da criação do imenso Parque Marinho Nazca-Desventuradas, revelou-se um marco inédito num continente em que a maioria das áreas de pesca é superexplorada. Por isso, decidimos ver o que distinguia essa comunidade. De novo em colaboração com a Waitt Foundation, seguimos para o arquipélago em março de 2017, para conhecer melhor as ilhas Robinson Crusoé, Alejandro Selkirk e Santa Clara.

    Em 1935, os antepassados dos atuais pescadores viram que, para continuar a viver da atividade, teriam de evitar a coleta excessiva das lagostas. Décadas antes de o manejo das áreas de pesca com base em dados científicos ser adotado nos países industriais, a comunidade de Juan Fernández instituiu um defeso, período em que ninguém pesca, durante quatro meses no ano, assim como adotou a devolução ao mar tanto das lagostas fêmeas com ovos como daquelas cujo cefalotórax medisse menos de 12 centímetros (nas lagostas, a cabeça e o tórax estão fundidos). Sem se dar conta, eles haviam adotado os três mandamentos da pesca sustentável – algo que muitos países ainda relutam em implementar.

    Além da extração sustentável, também ficamos surpresos com a abundância de peixes. Os nossos estudos mostraram que quase 99% dos peixes observados pertencem a espécies endêmicas de Juan Fernández e Desventuradas. Os dois arquipélagos são um mundo à parte, excepcionais ilhas de biodiversidade no Pacífico. Isso se explica pelo isolamento, mas também pela extrema produtividade dessas águas, graças à Corrente de Humboldt, que atua como um gigantesco sistema de transporte das águas antártidas rumo ao norte, passando pelas costas do Chile e do Peru. Essa corrente oceânica empurra a água superficial para o mar aberto, provocando a ressurgência de camadas de água ricas em nutrientes. Essa riqueza das profundezas é que torna as águas territoriais chilenas tão produtivas.

    Como os mergulhadores exploram as zonas mais próximas do litoral, para a maioria dos especialistas, as águas abertas que servem à navegação são praticamente desconhecidas. A fim de obter uma amostra da fauna desse mundo azul, recorremos a câmeras de vídeo presas a uma estrutura de plástico com boia e a iscas dentro de vasilhames furados. A ideia é atrair alguns espécimes com a ajuda de um pouco de alimento – é como pescar, mas sem usar anzóis. As câmeras são lançadas ao mar, os pesquisadores se afastam e, depois de uma hora, voltam para recuperá-las. A bordo, durante a noite, repassamos os vídeos. Essas filmagens revelaram muitas novidades. Em quase todos os casos, observamos a presença de tubarões-mako e tubarões-azuis. Entre os azuis havia tanto espécimes jovens como adultos, indicando que áreas ao largo de Juan Fernández são uma zona de reprodução e maturação. Muitas vezes, os espinhéis, com milhares de anzóis, capturam mais tubarões que os peixes-espada, que são os alvos autorizados da pescaria. Os pescadores de Juan Fernández e a comissão de turismo mantiveram reuniões para debater os resultados da expedição. Os habitantes querem continuar pescando de maneira sustentável e desejam que as espécies ameaçadas sejam protegidas. Em nova demonstração de visão de longo prazo, eles enviaram uma petição à presidente Michelle Bachelet, solicitando a ampliação da sua zona de pesca até o limite das 24 milhas náuticas, de modo que somente os pescadores locais atuem na região, em conformidade com o plano de manejo. Além disso, também pediram a criação de uma reserva marinha no trecho até as 200 milhas náuticas, o limite da zona econômica exclusiva do Chile ao redor de Juan Fernández. Essa seria a maior área protegida, em terra ou no mar, de todo o continente americano.

    Diego Ramírez, o arquipélago mais meridional do Chile, abriga a segunda maior colônia reprodutora de albatrozes-de-cabeça-cinza (Thalassarche chrysostoma).
    Foto de Enric Sala

    Depois das expedições exploratórias no arquipélago, tivemos encontros com a presidente Michelle, o chanceler Muñoz, o ministro do Meio Ambiente (Marcelo Mena) e o intendente da região do Estreito de Magalhães (Jorge Flíes), assim como reuniões consultivas com a Marinha do Chile. Então, no dia 1º de junho de 2017, na sua derradeira prestação de contas à nação, a presidente anunciou dois novos parques marinhos: um abrangendo as águas ao redor do Cabo Horn e das Ilhas Diego Ramírez; e o outro, em Juan Fernández, tal como solicitado pelos moradores. A decisão foi ratificada pelo chanceler Muñoz, na reunião plenária da conferência sobre os oceanos da Organização das Nações Unidas, em 7 de junho de 2017. Para o chanceler, esse governo realizou não só “uma contribuição para o Chile mas também para o mundo, pois os oceanos são cruciais na luta contra as mudanças no clima”.

    Os três parques marinhos criados pelo atual governo chileno vão se juntar ao Parque Marinho Motu Motiro Hiva, que, ao ser estabelecido pelo presidente Sebastián Piñera em 2010, era, na época, o maior das Américas. Esse marco histórico coloca o Chile na vanguarda mundial em termos de conservação marinha: de um país que explorava em demasia as suas águas territoriais, ele passou a ser um dos líderes mundiais na conservação marinha. Mais de 1 milhão de quilômetros quadrados de oceano estão totalmente protegidos. Em outras palavras, 29% das águas territoriais do país encontram-se a salvo da exploração humana, a fim de que esses ecossistemas únicos no mundo possam se recuperar e ser preservados.

    Como disse a presidente Michelle Bachelet, “estou convencida de que o desenvolvimento da humanidade só é viável com o desenvolvimento sustentável. Precisamos cuidar da economia, mas também precisamos cuidar da natureza”.

     

    Esta reportagem está publicada na edição de Dezembro de 2017 da revista National Geographic, publicada pela ContentStuff. Garanta já seu exemplar!

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