Dia da Consciência Negra: a história de resistência por trás do candomblé e da capoeira contada nas ruas de Salvador
Salvador, na Bahia – a maior cidade africana fora da África – é um retrato vivo da luta pela sobrevivência da população que descende daquela que um dia foi escravizada em território brasileiro.

A religião do candomblé foi proibida durante séculos por medo de que suas celebrações fossem associadas à bruxaria.
É só mais uma quarta-feira no Ilê Axé Opó Afonjá, um importante terreiro de candomblé em Salvador, capital do estado brasileiro da Bahia. A cidade é o coração da cultura afro-brasileira no país e a maior metrópole africana do mundo fora da África — com mais de 80% dos seus 2,4 milhões de habitantes sendo descendentes de africanos.
Neste cenário, o candomblé serve como um símbolo da resiliência e sobrevivência dessa comunidade afro-brasileira. Por isso, à medida que meus olhos se ajustam à penumbra, consigo discernir através de uma névoa de incenso uma fileira de objetos fixados na parede do templo: cabeças de machado, uma carapaça oca de tatu, uma pele de lebre. Os acólitos, vestidos de branco, começam a bater palmas lentamente, e eu me junto a eles.
Quando o ritmo acelera, uma mulher idosa à minha frente começa a girar em transe, com os olhos revirados, antes de desmaiar. Várias outras pessoas seguem o exemplo — a maioria também idosas —, mas nenhum dos espectadores parece preocupado. Em vez disso, eles levantam as palmas das mãos, acreditando que os idosos estão possuídos pelo espírito de Xangô, o orixá (divindade) da justiça da religião candomblé.
“Viemos todas as semanas para agradecer a Xangô”, diz Cláudio Fonseca, ancião do templo, vestindo uma camisa branca e colares de contas ao redor do pescoço, enquanto comemos pratos cheios de quiabo, camarão e ensopado de gengibre após a cerimônia.
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As fitas representam diferentes orixás (divindades do candomblé) de acordo com sua cor e são amarradas em cercas do lado de fora das igrejas católicas.
Como surgiu o candomblé no Brasil
Estamos em uma varanda de azulejos do lado de fora do salão de cerimônias, ao lado de uma estátua de Xangô, retratado como um homem barbudo em vestes vermelhas empunhando um machado — o que explica as armas penduradas na parede do templo. Xangô é apenas um dos dezenas de deuses venerados no candomblé, uma fusão de tradições religiosas — incluindo o iorubá e o catolicismo — trazidas para o Brasil por escravos da África Ocidental e Central entre os séculos 16 e 19.
Cláudio me conduz pelo terreno do templo, onde, entre árvores de jacarandá, edifícios pintados com cores vivas abrigam santuários dedicados a outras divindades. Entre elas estão Exu, o deus mensageiro, retratado vestindo vermelho e preto e empunhando um tridente; e Oxóssi, o espírito caçador, que carrega um arco.
Meu interlocutor aponta para um prédio baixo com telhado de palha, onde os novos seguidores devem passar por uma iniciação de 21 dias, submetendo-se a rituais exaustivos que são secretos para quem não pertence à religião.
O candomblé foi proibido durante séculos, temido por suas associações com a bruxaria e por seu potencial como veículo organizador de revoltas de escravos. Mesmo após a abolição da escravatura em 1888, ele não foi reconhecido como religião oficial até 1946.
Até meados da década de 1970, as cerimônias públicas exigiam autorização policial, que raramente era concedida. “Este é um templo de resistência”, diz Cláudio. “O candomblé foi ilegal durante séculos e, mesmo quando entrei em 1991, tínhamos que nos esconder. Mas então os escritores começaram a manifestar interesse e as atitudes melhoraram.”
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Festivais em homenagem à deusa do mar Iemanjá são realizados regularmente na religião candomblé.
A história contada no Pelourinho
Cláudio diz que, além do candomblé, ele pratica a capoeira, uma arte marcial que, assim como a religião, foi trazida para o Brasil pelo tráfico de escravos no Atlântico. Cláudio me convida para ir ao Instituto de Capoeira Angola Alagbedé, no Pelourinho, centro histórico de Salvador, tombado pela Unesco a 20 minutos de táxi do templo.
Pelourinho significa “pilar da vergonha”, uma referência a um poste onde os escravos eram punidos em praça pública — uma época difícil de imaginar enquanto caminho pelas ruas de paralelepípedos, passando por tocadores de banjo e cantores de samba nas esquinas.
Os edifícios da era portuguesa estão todos bem preservados, pintados em tons brilhantes de menta, coral e limão. Entrando em uma bela casa azul-petróleo, subo as escadas até o estúdio de capoeira, uma sala com vigas de madeira e uma bandeira angolana pendurada na parede. Sou recebido por Valmir Santos Damasceno, o mestre atlético e de barba grisalha do instituto.
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O Pelourinho é o centro histórico de Salvador e ganha vida à noite.
As origens da capoeira
“É uma dança de luta”, diz Valmir quando faço a ele uma velha pergunta: a capoeira é arte ou combate? Ela começou com o povo Mbundu, da atual Angola, como um estilo de luta militar e era praticada como forma de autodefesa pelos africanos escravizados no Brasil. Eles enfatizavam seus movimentos mais parecidos com dança — chutes amplos, trabalho rápido de pés — para esconder sua natureza combativa de seus captores portugueses.
“Ao longo dos séculos, algumas formas de capoeira absorveram influências do karatê e do taekwondo, mas aqui praticamos o estilo mais tradicional — mais parecido com dança e mais próximo do chão”, diz Valmir.
Atrás dele, dois de seus alunos estão praticando, evitando os chutes circulares e golpes com as mãos um do outro com rodas. “É um diálogo, não uma competição”, diz Valmir. “Não estou ensinando as pessoas a serem violentas. Estou ensinando a perceber seu potencial, a compreender sua ancestralidade.”
A capoeira, assim como o candomblé, foi reprimida pelas autoridades por muito tempo devido ao seu potencial de unir e mobilizar a comunidade afro-brasileira, e foi ilegal até 1940. Hoje, é um símbolo da sobrevivência africana aos horrores da escravidão e um pilar da comunidade afro-brasileira moderna do Brasil. Grupos como o de Valmir são comuns em Salvador, praticando em praças e palcos de teatro.
Mais tarde naquele dia, fiz um passeio a pé pelas ruas de paralelepípedos do Pelourinho com o guia Isaco Costa — um homem mestiço que cresceu católico, mas depois adotou a religião candomblé de seus ancestrais africanos. A influência das culturas africanas não existe apenas em alguns bolsões aqui; ela permeia tudo.

Baianas como Verônica Paixão vendem comida de rua com roupas vibrantes e são ícones da cidade.
As the sun goes down, Isaco leads me into the blue-fronted Church of Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, built by enslaved Africans in the 18th century for the Afro-Brazilian community to worship in — a nominally Catholic space, but one infused with Candomblé influences. A crowd gathers and from a high balcony, musicians play African percussion, drumming the same mesmerising rhythms I had heard at the Candomblé ceremony. A procession advances down the nave, with dancing women carrying baskets of bread, led by a priest swinging a billowing thurible of incense. The congregation waves their hands and hug, singing ‘Hallelujah’ over the rhythms.
“Syncretism. Respect. Resistance,” says Isaco. “When you combine different cultures, you find a new kind of power.” And in that line lies the essence of Salvador: a city bold and beautiful, compelled by its own spirits.
Isaco aponta representações sutis dos deuses do candomblé — o machado de Xangô reimaginado como uma escultura moderna imponente e o tridente de Exu transformado em postes de cerca — que, acredita-se, conferem proteção e fortuna. Ao lado de uma barraca de comida fumegante, Isaco me apresenta Verônica Paixão, uma mulher com uma saia laranja brilhante inflada por uma crinolina. Seu pescoço está enfeitado com contas coloridas, que, segundo ela, representam diferentes divindades do candomblé.
Verônica é uma baiana — vendedora de bolinhos fritos conhecidos como acarajé, feitos de pasta de feijão-fradinho e recheados com carne, peixe e vegetais. Assim como o candomblé, o lanche é originário da cultura iorubá.
As baianas são um ícone de Salvador e podem ser vistas por toda a cidade, atraindo clientes com suas roupas típicas. Veronica me entrega um acarajé, recém-saído da fritadeira. Depois que esfria, dou uma mordida e sinto uma explosão de sabor de caranguejo, coco, camarão e cebola. “A comida dos deuses”, diz Verônica com um sorriso, e ela não está apenas sendo metafórica — o acarajé está entre os alimentos usados como oferendas rituais no candomblé.
À medida que o Sol se põe, Isaco me leva à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, com sua fachada azul, construída por africanos escravizados no século 18 para a comunidade afro-brasileira praticar sua religião — um espaço nominalmente católico, mas impregnado de influências do candomblé.
Uma multidão se reúne e, de uma varanda alta, músicos tocam percussão africana, batendo os mesmos ritmos hipnotizantes que eu ouvi na cerimônia de candomblé. Uma procissão avança pela nave, com mulheres dançando carregando cestas de pão, lideradas por um padre balançando um incensário cheio de fumaça. A congregação acena com as mãos e se abraça, cantando “Aleluia” ao ritmo da música.
“Sincretismo. Respeito. Resistência”, diz Isaco. “Quando você combina diferentes culturas, você encontra um novo tipo de poder.” E nessa linha está a essência de Salvador: uma cidade ousada e bela, impulsionada por seus próprios espíritos.
Este artigo foi produzido pela National Geographic Traveller (Reino Unido).