Heróis ou vilões? No aniversário de São Paulo, entenda quem foram os bandeirantes

A figura dos homens que avançaram pelo interior do Brasil atrás de escravos e pedras preciosas ainda está presente na maior cidade brasileira, que chega aos 469 anos.

Por Redação National Geographic Brasil
Publicado 23 de jan. de 2023, 13:40 BRT
Monumento às Bandeiras, localizado na Praça Armando de Salles Oliveira, na região sul da cidade de ...

Monumento às Bandeiras, localizado na Praça Armando de Salles Oliveira, na região sul da cidade de São Paulo.

Foto de Cecilia Bastos Jornal da USP

Para quem não mora no estado de São Paulo, a memória sobre os bandeirantes talvez não desperte especial atenção. Para os paulistas, no entanto, essas figuras históricas ainda marcam o dia a dia, seja dando nome a estradas e avenidas, ou ocupando um espaço nobre em uma das áreas mais importantes da capital paulista – que cumpre 469 anos neste dia 25 de janeiro. 

Basta ver como o grupo de desbravadores, que atuou principalmente entre os  séculos 17 e 18, foi imortalizado na forma do Monumento às Bandeiras – uma estátua de 50 metros de comprimento assinada pelo exponencial artista brasileiro Victor Brecheret – localizado bem diante do Parque Ibirapuera, o mais famoso respiro verde local.  

Segundo o historiador Paulo César Garcez Marins, professor chefe do Departamento de Acervo e Curadoria do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Comissão de Pesquisa da mesma instituição, essas figuras entraram no imaginário histórico de São Paulo, durante o século 20, como os “desbravadores do Brasil”. 

“Os bandeirantes foram muito usados na construção de uma identidade paulista, sendo valorizados como os principais responsáveis pela extensão territorial brasileira, alçando o posto de heróis”, explica ele. Hoje, no entanto, discussões pressionam para que esse heroísmo seja revisto. Isso porque os feitos desses homens, muitos deles violentos, foram suprimidos nesse processo de idealização. 

“Eles são lembrados só como construtores de riqueza e da nacionalidade, mas não são lembrados como assassinos e escravizadores de indígenas, como foras da lei ou até mesmo como estupradores. Essas dimensões da história dos bandeirantes sumiram”, afirma o historiador. 

Quem foram os bandeirantes

Os bandeirantes foram os líderes de expedições chamadas bandeiras, ou entradas, que aconteceram entre os séculos 17 e 18 para explorar o interior do Brasil, que à época consistia de esparsas vilas localizadas em seu litoral. Entre elas estavam as vilas de São Vicente e de São Paulo, consideradas o epicentro das campanhas desses desbravadores, de acordo com acervo do Museu Paulista.  

Entre os principais objetivos das bandeiras estava a caça às comunidades indígenas para captura de pessoas a serem escravizadas, e a procura por metais preciosos, como ouro e prata. “A região via a exploração do sertão como um meio de contornar a decadência do plantio de cana-de-açúcar, que tinha engrenado muito mais no Nordeste”, conta Marins. 

“Sem a riqueza do açúcar, donos de terras, que na época cultivavam o trigo, não tinham acesso aos escravizados negros traficados da África, que eram caros. Então, a busca por indígenas foi a primeira grande motivação”, completa. 

As campanhas dos sertanistas, como eram chamados os bandeirantes na época, eram reconhecidas pela Coroa Portuguesa. Segundo artigo A mitologia Bandeirante: construção e sentidos, do sociólogo Ricardo Luiz de Souza, a escravização de indígenas era algo até incentivado entre os paulistas visto que essa motivação também trazia avanços no reconhecimento de territórios ainda inexplorados.

Representação fotográfica do quadro Domingos Jorge Velho, obra de Benedito Calixto, produzida em 1903. O bandeirante é representado em uma “pose monárquica”, semelhante à como Luís XIV, Rei da França, era pintado em seus retratos.

Foto de Wikimedia Commons

Bandeiras: expedições para extermínio de negros e indígenas

Mas nem todas as capturas de escravos estavam de acordo com a legalidade. “Os sertanistas escravizaram até mesmo indígenas católicos, já catequizados pelas missões jesuítas”, explica Marins. Conforme a lei da época, os indígenas somente poderiam ser escravizados em situações de “Guerra Justa”, ou seja, quando eram hostis aos colonizadores.

Segundo o acervo do Museu Paulista, padres jesuítas e autoridades portuguesas deixaram muitos relatos sobre a violência com a qual os bandeirantes atacavam as missões religiosas e as aldeias indígenas. Os relatos dos padres, alguns presentes no livro Jesuítas e Bandeirantes no Tape, do historiador portugês Jaime Zuzarte Cortesão, descrevem conflitos armados, além de roças destruídas e crises de fome. 

Além de aprisionar novos escravos, os bandeirantes também eram contratados para dizimar comunidades indígenas rebeldes e quilombos, coletivos formados por africanos escravizados fugidos e seus descendentes. 

Entre os sertanistas, Domingos Jorge Velho foi um dos que se destacou na época por sua ferocidade na caça aos indígenas. “Ele era reconhecido como um grande caçador. Tanto que era contratado para isso”, diz Marins. Ele também lembra que foi uma bandeira de Domingos Jorge Velho que acabou, em 1694, com o Quilombo dos Palmares, o maior coletivo do tipo da era colonial. Seu último líder, Zumbi, foi capturado e morto um ano depois na data que hoje é comemorado o Dia da Consciência Negra no Brasil. Ele estava sob contrato do governo de Pernambuco. 

Por que os bandeirantes viraram heróis de São Paulo 

O artigo de Ricardo Luiz de Souza indica que o movimento para construir uma imagem de heróis paulistas para os bandeirantes teve início no final do século 19. O motivo, segundo ele, era fortalecer a posição política do estado de São Paulo perante o resto do país. 

“Nesse momento, São Paulo já era o centro econômico da nação, mas ainda ocupava posição política secundária e acumulava ressentimentos. Nesse contexto, os cafeicultores paulistas acentuavam seu passado, mesmo que de forma imaginária”, escreve Souza. 

Marins, por sua vez, reforça que a figura do bandeirante foi escolhida para engrandecer o passado das elites paulistas da época (os cafeicultores), alguns até descendentes de sertanistas, em um momento em que seu poder poderia ser questionado. 

“A construção desse mito acontece pouco tempo depois da abolição definitiva da escravidão, que ocorreu no Brasil em 1888, e da proclamação da República, em 1889. Mas o poder ainda estava nas mãos de escravocratas”, diz Marins. “Nesse contexto, exaltar os bandeirantes reforça uma hierarquia que tinha sido colocada em cheque”. 

O papel da arte na construção da imagem dos bandeirantes

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    À esquerda: No alto:

    Representação fotográfica do quadro Os Bandeirantes de Henrique Bernardelli, pintado em 1889, uma das primeiras obras que retratavam os bandeirantes.

    Foto de Google Arts and Culture
    À direita: Acima:

    Representação fotográfica da tela O Ciclo da Caça ao Índio, de Henrique Bernardelli. A obra exemplifica o esforço de criar uma imagem heróica para os bandeirantes

    Foto de Wikimedia Commons

    Quadros, estátuas, monumentos e homenagens que perduram até hoje foram os principais meios de transformação dos bandeirantes de “caçadores de índios” e “homens terríveis” para “desbravadores” e “construtores da pátria”, segundo Michelli Cristine Scapol Monteiro, pesquisadora com ênfase em representações visuais e construção de imaginários simbólicos a partir de pinturas históricas e monumentos públicos no Museu Paulista da USP.

    Segundo Monteiro, é possível ver essa transformação ao comparar as primeiras representações artísticas dos bandeirantes com as produzidas mais tarde no século 20. “Uma das primeiras obras que retratou essas figuras foi o quadro Os Bandeirantes, de Henrique Bernardelli, finalizado em 1889. Nela vemos dois bandeirantes deitados no chão, bebendo água de um riacho, como animais, enquanto índios em pé, ou sentados, os observam", disse Monteiro em entrevista à reportage. "Não é uma composição que engrandece os aventureiros.” 

    Anos depois, em 1922, o mesmo artista produz outro quadro sobre os bandeirantes, desta vez como uma encomenda para as comemorações do centenário da Independência. A tela intitulada O Ciclo da Caça ao Índio já dispõe o bandeirante em primeiro plano, em uma pose de monarca europeu, com indígenas ao fundo, segundo analisa o artigo Nas matas com pose de reis: a representação de bandeirantes e a tradição da retratística monárquica europeia, de Paulo César Marins. 

    Essa transição na representação dos bandeirantes no trabalho de Bernardelli fez parte de um esforço muito maior de construir uma narrativa histórica para os heróis paulistas. E, segundo Michelli Monteiro, o Museu Paulista foi uma instituição essencial nesse processo, através de seu diretor à época, Affonso Taunay, historiador e professor brasileiro que assumiu a direção da instituição em 1917, a fim de prepará-la para o centenário da independência. 

    “Taunay foi uma figura central nisso. A partir de encomendas de obras, nas quais fazia pedidos específicos para os artistas, ele monta essa narrativa dos heróis dentro do Museu Paulista”, diz a pesquisadora.

    O museu dos bandeirantes

    Entre as obras encomendadas pelo diretor do Museu Paulista estão duas estátuas representando os bandeirantes Antônio Raposo Tavares e Fernão Dias Paes Leme que, de acordo com Taunay, eram "dois titãs", simbolizando os dois grandes "ciclos do bandeirantismo": Tavares seria lembrado pela caça aos indígenas e Leme pela exploração do ouro e outras pedras preciosas. Elas ainda estão em exposição, dispostas uma de cada lado do salão de entrada.

    Estátua de Antônio Raposo Tavares, um famoso bandeirante paulista, disposta na entrada do Museu do Ipiranga.
     

    Foto de José Rosael Museu Paulista

    Outra obra de destaque é o quadro Domingos Jorge Velho, de 1903, de autoria de Benedito Calixto, no qual o destruidor do Quilombo dos Palmares é pintado na mesma pose em que o Rei da França Luís 14 costumava ser retratado, segundo Marins. 

    As escolhas para construir essa imagem de heróis não se limitam às poses e composições. Até a escolha dos sertanistas que seriam homenageados era calculada. “A escolha de Tavares e Fernão Dias para as estátuas, por exemplo, além de representarem dois momentos importantes das bandeiras, também eram de homens ‘indubitavelmente europeus’, como dizia Taunay”, diz Marins. 

    Essa colocação mostra que mesmo características dos bandeirantes eram ocultadas. “Grande parte dos homens que participavam das bandeiras eram mestiços entre brancos e indígena”, explica Marins. Além de escolher homens de descendência européia, quadros como o de Calixto "embranqueciam" os retratados.

    Como ressignificar a história de São Paulo

    As referências à grandiosidade dos bandeirantes não se limitaram à representações artísticas. Documentos do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo mostram que o primeiro endereço público a ser batizado em homenagem a esses homens foi a rua dos Bandeirantes, no bairro do Bom Retiro, em maio de 1891. 

    De lá para cá, os paulistas viram a inauguração da Avenida dos Bandeirantes, a Rodovia dos Bandeirantes, o canal de TV Bandeirantes e até a sede oficial do governo do estado de São Paulo, que se chama Palácio dos Bandeirantes. Figuras específicas, como Raposo Tavares, Fernão Dias e Anhanguera também são lembrados em nomes de rodovias importantes do mais rico estado brasileiro.

    “Isso tudo, de alguma forma, gravou a imagem dos heróis bandeirantes na memória social coletiva de São Paulo, sendo muito relacionada com a importância econômica do estado e da capital”, afirma Michelli Monteiro. Para ela, essa imagem ainda é muito presente, o que cria uma necessidade de questionar essas homenagens. 

    “Hoje em dia esse é o nosso papel, pelo menos no âmbito da história, de colocar esses marcos em cheque e questionar como a exaltação dessas figuras pode ser um problema e causar incômodo na sociedade”, afirma a pesquisadora. 

    O Museu Paulista, também conhecido como Museu do Ipiranga, tem um lugar importante em ressignificar a origem e a trajetória dessas figuras, apontando as contradições e objetivos por trás das representações dos bandeirantes. 

    A exposição do material artístico que conta com os quadros encomendados para o centenário da independência enfatiza que as representações foram feitas a partir de visões elitistas, que desvalorizavam a presença dos indígenas e dos negros no passado brasileiro. 

    “Temos que olhar para essas obras e monumentos tendo em mente que elas reforçavam a hierarquia do período colonial", diz Marins, "colocando negros e indígenas na posição de inferiores e atendendo a interesses da elite branca da época.”

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