Açaí certificado do Amapá mostra que soluções tradicionais são futuro para a Amazônia

A presença do fruto na dieta regional é tão antiga quanto à ocupação da floresta – e seu uso tem a ver com o manejo racional do fogo.

A tarde cai na comunidade do Arraiol, onde a lama é um elemento constante na vida dos moradores. A maré determina absolutamente tudo no cotidiano local: ir para floresta trabalhar, visitar o cemitério, esperar a pororoca, pescar, caçar e até mesmo jogar bola e tomar banho de rio no fim de tarde. 

Foto de Maurício de Paiva
Por Carolina Pinheiro
Publicado 28 de dez. de 2022, 09:04 BRT, Atualizado 31 de dez. de 2022, 11:11 BRT

Os coletores se preparam para partir depois de acondicionar o açaí em sacas grandes, de 28 quilos cada. Com os fardos sobre os ombros, os homens deixam a mata enquanto as mulheres ajeitam paneiros, peconhas, latas e demais apetrechos da lida. Por fim, elas dobram as lonas que foram abertas rente ao solo para a debulha e separação do fruto da palmeira amazônica. 

Os ribeirinhos depositam cuidadosamente as sacas dentro do barco, que seguirá viagem na próxima hora. Os paneiros, cestos trançados de forma artesanal, estão carregados de um açaí miúdo, o chamado chumbinho.

Mais um dia chega ao fim no Arraiol, comunidade do arquipélago do Bailique, um grupo de oito ilhas na região da foz do rio Amazonas, a 200 quilômetros de Macapá. O açaí coletado será processado pela Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Bailique, a Amazonbai. Trata-se do primeiro empreendimento comunitário do Brasil com foco no açaí a conquistar a certificação FSC (Forest Stewardship Council) de manejo florestal, cadeia de custódia e procedimento de serviços ecossistêmicos. O açaí Amazonbai possui também um atestado de Produto Vegano e o Selo Amapá, que promove a valorização dos produtos nativos do estado.  

Essa história de sucesso na produção e comercialização de um fruto emblemático da Amazônia começou a tomar forma em 2013, quando agricultores, pescadores e extrativistas se reuniram para instituir o Protocolo Comunitário, que permitiu a gestão da operação pelos moradores com base na força da identidade sociocultural local. “No Bailique, muitos homens e mulheres detêm o conhecimento tradicional”, subscrevem os habitantes em um trecho do documento. São pessoas que conhecem a fundo as plantas da região, utilizando-se da biodiversidade para a alimentação e a cura. “Para a manutenção de tais saberes, é preciso ter a garantia plena do território e dos recursos naturais”, prossegue o texto. 

“Eu descrevo a floresta como um lugar de aconchego. Ela me deu tudo o que tenho. Minha relação é de imenso carinho com esse lugar e por isso o trato com tanto respeito”, conta Manoel Miracy dos Santos Filho, o Miro, um dos sócio-fundadores da cooperativa, criada em 2017. 

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    Um peconheiro – coletor de açaí – de Mazagão Velho, área de sítios arqueológicos no Amapá, desce do açaizeiro com um cacho do fruto e a faca nas costas. O terçado, como é chamado um tipo de facão utilizado pelos caboclos ribeirinhos, é crucial na lida e no agroextrativismo na mata. O terreno de açaizais pertence a famílias quilombolas.

    Foto de Maurício de Paiva
    À esquerda: No alto:

    O fogo também serve de repelente contra insetos, aceso em folhas de palmeiras secas e restos de cupinzeiro, nas áreas de coleta de açaí. No terreno de várzea, proliferam os pernilongos carapanãs. Os peconheiros usam também botas longas de borracha para se proteger de cobras e escorpiões.

    À direita: Acima:

    Ao redor do fogo, pescadores se recolhem ao final do dia na Reserva Biológica do Lago Piratuba, na região da foz do Amazonas. A pesca amazônica é ancestral, com técnicas passadas de geração para geração, como atestam restos de peixes e ossos encontrados em sítios arqueológicos. 

    fotos de Maurício de Paiva
    À esquerda: No alto:

    O coletor Carlos Vilhena dos Santos carrega uma saca de açaí durante a jornada de trabalho, que leva o dia todo na floresta de várzea do Bailique. Os jovens adultos são os mais resistentes na lida.

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    O coletor João Marcos Lopes Chaves, 22 anos, entrega uma das sacas da produção do dia antes de ser embarcada na canoa que levará até a embarcação da cooperativa Amazonbai. O açaí dos produtores cooperados é depois transportado para Macapá – trajeto que é feito uma vez por semana.

    fotos de Maurício de Paiva

    Agricultor, extrativista e líder comunitário do Arraiol, José Cordeiro dos Santos Lopes, o Zeca, debulha cachos de açaí manejado em sua área de plantio. Um mestre do extrativismo familiar regional, Zeca responde por boa parte da produção na safra de açaí do Bailique.

    Foto de Maurício de Paiva

    Miro atravessa a passarela de madeira, observando o correr do rio em aparente comunhão com o movimento das nuvens. Céu e correnteza se tocam na linha do horizonte. A tarde de trabalho avança noite adentro. Ao pisar na varanda, o pai de cinco filhos tira as botas antes de entrar em casa, onde irmãos, avós, tios e primos circulam entre a sala e cozinha à espera do jantar. Um dos jovens liga a televisão e a parentada se espalha pelo chão. A comida é servida: mel, queijo de búfala, frutas, sementes, ervas e tigelas de açaí batido, farinha e peixe fresco. Tudo extraído e beneficiado na comunidade e arredores. 

    A rede de abastecimento de energia elétrica não chega ao Arraiol. Geradores e placas de luz solar compõem o aparato que gera a limitada iluminação noturna. São variadas as ocasiões em que o uso do fogo ainda serve como auxiliar para orientação dos moradores na penumbra: lamparinas costumam ser dispostas sobre mesas, cômodas e parapeitos de janela nas casas mais afastadas da vila. Recostado no colo da esposa, Miro comenta com os demais sobre a partida da carga em direção a Macapá: “O barco passou a semana parado. Muita chuva. Só hoje conseguimos arrumar o transporte do açaí”. 

    Os desafios do clima

    Os reflexos da crise climática são evidentes nas comunidades da foz do maior rio do mundo, que sempre dependeram da previsibilidade da natureza para subsistir. Em 2022, a lançante ou “água grande”, como é chamada ali a maré alta, chegou bem antes do habitual. Na estação das chuvas, o inverno amazônico, a precipitação excessiva tem causado inundações precoces, alagamentos desproporcionais de roçados e alteração do calendário de coletas. No período da seca, ou verão, o oceano avança sobre o Amazonas, que sofre constante diminuição de seu fluxo devido a impactos ao longo de seu curso. 

    Fenômenos naturais como a erosão e a salinização da água têm se intensificado nos últimos anos. A Geosat, empresa europeia que monitora a zona estuarina do Amapá em parceria com os cientistas do Núcleo de Desenvolvimento Territorial Sustentável da Universidade Estadual do Amapá, fornece imagens de satélite da área que engloba toda a foz, de Macapá ao Sucuriju. Para Gabriel Araújo da Silva, coordenador-geral do projeto Economias Comunitárias Inclusivas, os registros coletados desde 1999 evidenciam uma mudança de dinâmica das águas. “A elevação e permanência excessiva da água do mar sobre os territórios altera a direção do fluxo do rio, que, com força menor, acaba sendo desviado, na íntegra, para o canal Norte, que passa pelo sul do Bailique. Isso faz com que não sobre água para sair pelo canal do Guimarães, que escoa pelo meio do arquipélago”, diz.

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        O fogo que maneja a terra é o mesmo que, no passado, queimava a argila moldada pelos ancestrais que viviam em sociedades complexas. Esta urna funerária, da tradição Polícroma, na fase arqueológica Marajoara, foi datada entre os anos de 400 e 1400. Os grafismos nas cerâmicas muitas vezes mostram partes de animais como lagartos, cobras ou jacarés, em figuras humanas híbridas, que aludem à ideia de transformação corporal, um tema elementar das cosmovisões ameríndias. 

        Acervo Coleção Arqueológica Reserva Técnica Mario Ferreira Simões/Museu Paraense Emílio Goeldi 

        Foto de Maurício de Paiva

        Do sul do Amapá e datada a partir do século 11, uma urna funerária da tradição cerâmica Maracá apresenta marcas de superfície escuras oriundas do processo de fabricação e queima chamada pelos arqueólogos de Fire Cloud. O sexo representado nos vasos correspondia, em geral, ao mesmo gênero dos esqueletos sepultados em seu interior.

        Acervo Coleção Arqueológica Reserva Técnica Mario Ferreira Simões/Museu Paraense Emílio Goeldi 

        Foto de Maurício de Paiva

        Segundo o professor, é claramente maior a velocidade dos processos de erosão que levariam, em média, 40 anos para gerar uma perturbação que forçasse a migração de moradores – o que aconteceu em localidades mais ao norte do Arraiol. “Quando a água do mar vem, gera marés mais altas do que as de rio. Essa maré ultrapassa o nível do solo e encharca a terra, que erode. Seria um processo de décadas, mas comunidades inteiras desapareceram em apenas quatro anos”, diz Gabriel. “A deposição de sedimento é um fenômeno natural. O que mudou foi a constância de sua ocorrência.” 

        Outro problema foi o desaparecimento da foz do rio Araguari – com a construção de três hidroelétricas ao longo da bacia, ele deixou de conectar-se com o mar. O surgimento do canal Urucurituba, que mudou o curso do Araguari, também interferiu na dinâmica do fluxo de água no canal do Guimarães. 

        Os ribeirinhos trabalham ao lado dos cientistas na busca por soluções. “O manejo do açaí depende muito da chuva. O costume sempre foi coletar por dois ou três dias para depois enviarmos a carga. Só que, com muita água, o trabalho emperra. Como a Amazonbai não compra açaí molhado, só enxuto, há semanas que não rendem nada. Com dois dias de verão, o barco enche tranquilo. Mas os invernos têm sido rigorosos e, às vezes, esperamos sete dias seguidos até que a chuva passe”, relata Miro. 

        O agroextrativista se refere ao que chamam de “geleira”, o barco equipado com câmaras frias para o acondicionamento do fruto que parte uma vez por semana da vila Progresso em direção ao porto de Matapi, em Macapá, onde fica a agroindústria da cooperativa. São 12 horas de viagem pelo rio. “Tudo aqui é maré, é barco. Tudo é longe e caro”, afirma.

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          Queimadas de anos recentes ameaçam não só a floresta, mas também o patrimônio arqueológico da Amazônia. O sítio Rego Grande, em Calçoene, norte do Amapá, é conhecido como Stonehenge Tropical: estruturas megalíticas de até 4 metros de altura estão dispostas em um círculo de 30 metros de diâmetro. Datado entre os séculos 9 e 10, o monumento foi construído em alinhamento com a posição do Sol no solstício de inverno do hemisfério Norte – um indicativo de que possa ter sido um observatório astronômico.

          Foto de Maurício de Paiva
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          O solo enegrecido pelas chamas ainda arde em uma área que serviu como base aérea militar durante a Segunda Guerra Mundial no Amapá. A entrada de um dos antigos paióis de material está preservada nesse sítio arqueológico histórico.

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          Provocado por criadores de gado, um incêndio se alastra nas imediações da BR-156, próximo aos municípios do Amapá e Calçoene. Esse tipo de fogo acontece sobretudo na época da transição entre o verão e o inverno amazônico. A partir do final de dezembro, quando começam as chuvas, o solo queimado torna-se propenso à formação de pastagens.

          fotos de Maurício de Paiva

          Fazendas de criação de búfalos espalham-se no entorno da comunidade do Arraiol, no arquipélago do Bailique. Na fazenda Batalha, vaqueiros, muitos deles vindos da ilha do Marajó, lidam com os animais no campo aberto.

          Foto de Maurício de Paiva
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          Lorrain Marques posa com sua indumentária e a sela de vaqueiro. No Arraiol, os jovens coletores de açaí também aprendem os conhecimentos mais antigos, como a lida com o gado, a caça e pesca, o trato com a madeira de lei e o manejo dos motores usados nas embarcações.  

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          Um jovem exibe a cabeça de um búfalo abatido para a comunidade. Fazendas de criação de búfalos espalham-se no entorno do arquipélago do Bailique. 

          fotos de Maurício de Paiva

          Pesquisas sobre o processo histórico que envolve o manejo do açaí revelam que se trata de uma das plantas mais importantes no passado e presente da Amazônia. Os registros mais remotos sobre o seu consumo – cerca de 12 mil anos – são de um sítio arqueológico em Monte Alegre (PA), a Caverna da Pedra Pintada. A presença do açaí na dieta regional é tão antiga quanto à ocupação da floresta. 

          Ao longo dos milênios, explica Laura Furquim, arqueóloga e doutoranda pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, os povos ancestrais aprimoraram conhecimento sobre como aproveitar o potencial nutritivo da espécie com maior dominância na floresta. “As pessoas que manejavam a palmeira foram formando pomares perto de casa. O açaí tem relevância para a construção de nichos culturais, num processo que influenciou o padrão da cobertura vegetal da Amazônia atual”, diz. 

          O açaí é também um símbolo que conecta plantas e pessoas na formação de agroflorestas com o uso do fogo. “Os açaizais, como a maioria das concentrações de plantas, são resultado do manejo humano. Muitas espécies ocorrem naturalmente, mas em quantidade restrita nas áreas de várzea. Nos sítios arqueológicos, percebemos que a palmeira se desenvolve também na terra firme e em uma densidade maior. Portanto, pensar no açaí sem o associar ao histórico de manejo das matas, do fogo e de solos antropogênicos – ou seja, na construção de florestas culturais – é impossível”, reitera a cientista. 

          Esse é um cenário comum nas Terras Preta de Índio (TPA), assim chamadas devido à presença de carvão, cinzas e restos de fogueiras utilizadas pelos povos antigos. São extremamente férteis e se espalham, em forma de manchas, por toda a bacia amazônica. 

          “O fogo é uma tecnologia de manejo da floresta, o primeiro domesticador da paisagem”, conta Eduardo Góes Neves, arqueólogo e professor titular do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. “Ele é parte intrínseca da ocupação dos territórios no Brasil. Há relação direta entre o seu uso e a história dos nossos biomas.” 

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            O cultivo de mel em área de açaizal funciona como uma alternativa econômica para alguns moradores. A fumaça intensa sai do fumigador, aparelho que ajuda a controlar eventuais ataques das abelhas. A produção chega a 4 toneladas durante uma safra; o mel é vendido para Macapá e consumido na comunidade.  

            Foto de Maurício de Paiva

            Tatiele Lopes dos Santos segura mudas da palmeira açaí, ou açaizeiro. Os viveiros são mantidos em casas e áreas produtivas do Arraiol, e asseguram a continuidade das plantações do rentável e arraigado fruto regional – um cenário que alude à própria pintura ao fundo da foto.

            Foto de Maurício de Paiva

            O agroextrativista Luciano Marcos Pantoja, a esposa Taís e sua filha bebê no quarto do casal. Os moradores do Arraiol pertencem a praticamente duas famílias, os Lopes e os Sarges. No passado, não era comum o casamento entre duas pessoas de comunidades diferentes – há muitos casos de uniões aparentadas, entre primos, por exemplo.

            Foto de Maurício de Paiva

            Sacas de 28 quilos, levadas aqui em um barco da comunidade do Arraiol, são uma unidade oficial de medida entre os agroextrativistas e os atravessadores de açaí. 

            Foto de Maurício de Paiva
            José Cordeiro dos Santos Lopes, o Zeca, fala sobre como o manejo do fogo, realizado pelas populações tradicionais, torna o elemento uma ferramenta de construção de paisagens. Edição e montagem: André Cantuária

            Na floresta cultivada de forma tradicional, a queima prepara a terra para o recebimento de novas sementes que, por sua vez, estimulam a expansão das matas. “Não há como o homem do campo trabalhar sem o uso do fogo, mas ele precisa ser usado de maneira responsável”, pondera Miro. “Eu considero o fogo tão importante na vida quanto a água e o alimento.”  

            O problema está nos modelos de desenvolvimento econômico do mundo moderno, nos quais a relação do homem com o fogo visa quase sempre à explorar os espaços naturais de forma predatória. Levantamentos nos últimos anos mostram que queimadas ilegais ocorrem nas mesmas áreas com maior incidência de desmatamento, fragilizando, por exemplo, os ambientes de transição entre florestas e savanas, locais privilegiados para o manejo de plantas no início da ocupação humana da Amazônia.  

            Cultivada por 12 mil anos, a floresta amazônica sofreu, nas últimas três décadas, um impacto maior do que o sofrido desde a chegada dos colonizadores, no século 16. O novo relatório do MapBiomas sobre mudança de uso e cobertura da terra em biomas ameaçados na América do Sul, lançado na 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 27), aponta que a perda de vegetação do bioma entre 1985 e 2020 foi de 9,6% – desde a chegada dos portugueses, em cinco séculos, havia sido de 8%. Somam-se 75 milhões de hectares de floresta dizimada, 13% somente em território brasileiro. 

            “Se as atuais tendências de desmatamento forem mantidas, a floresta amazônica poderá atingir seu ponto de inflexão ainda nesta década, passando de sumidouro de carbono a emissor”, diz Julia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas. "O processo de destruição da Amazônia é também um processo de destruição de perspectiva sobre o planeta", complementa Eduardo Neves. 

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              Margens e embarcações são decoradas para a procissão fluvial do Divino Espírito Santo, em maio, no domingo de Pentecostes – a coroa do Divino é conduzida rio abaixo a partir do Arraiol. Segundo alguns moradores antigos, a coroa chegou ao arquipélago por volta do ano de 1900, vinda de Abaeté, no Pará.

              Foto de Maurício de Paiva

              A névoa pontua a aurora no Arraiol, e o caboclo ribeirinho já está em seu barco para a lida agroextrativista. As mesmas matas cultivadas de açaí abrigam diversidades de madeiras como o pau-mulato, a andiroba, macacaúba, siriúba, e o buriti, entre outras. 

              Foto de Maurício de Paiva
              Zeca esclarece que não é possível pensar em preservação ambiental sem integrar o conhecimento empírico no debate que inclua a educação como princípio da economia baseada na floresta em pé. Edição e montagem: André Cantuária

              O manejo da abundância

              Dentre as diferentes espécies de açaí, há o açaí-do-pará ou solitário (Euterpe precatoria) e o açaí-do-mato ou de touceira (Euterpe oleracea), nativo das florestas de várzea e predominante no arquipélago do Bailique. O açaí-de-touceira leva esse nome pela sua característica de agrupamento de palmeiras. “Touceiras ideais, com até nove árvores, de matrizes produtivas a perfilhos, precisam estar de 7 a 9 metros distantes entre si. Sem isso não há incidência de luz solar”, diz o agroextrativista Miro. 

              Os ribeirinhos fazem a seleção das matrizes e coletam sementes de acordo com a produção desejada – fruto graúdo ou miudinho. Em mutirões, realizam a manutenção regular dos açaizais, com limpeza, desbaste de touceiras e retirada de tocos. 

              Na propriedade de José Cordeiro dos Santos Lopes, o Zeca, além do açaí, espalham-se espécies como andiroba, pracaxi, pau-mulato, limãozinho, cupuaçu, cacau, taperebá e buriti. Uma rica biodiversidade predomina, e a “luta é para que as pessoas enxerguem a natureza como irmã, mãe, amiga”, pondera Zeca. 

              Em artigo publicado em outubro de 2021, a bióloga Sara Deambrozi Coelho, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), levantou que as comunidades amazônicas sabem utilizar 84% das árvores e palmeiras existentes em seus territórios. “As espécies arbóreas domesticadas dominam a floresta e possuem enorme utilidade e valor socioecológico. Parte dessa abundância é resultado do manejo dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Eles possuem um entendimento muito grande em relação a como viver, transformar e se adaptar a tais espaços.”  

              Conceitos de bioeconomia e agroecologia estão no centro do debate sobre a Amazônia. De acordo com o relatório The State of the World's Forests, das Nações Unidas, de 2020, o papel das florestas na mitigação da crise do clima, na regulação do abastecimento de água e no fornecimento de hábitats para polinizadores é essencial para a produção sustentável de alimentos. O uso de sistemas agroflorestais para a conservação da biodiversidade garante a segurança alimentar e o bem-estar de bilhões de pessoas. 

              Esse é o modelo bem-sucedido em curso na região que abrange o Bailique e Beira Amazonas, em uma área agroextrativista certificada de 10 mil hectares. “Os ribeirinhos são protagonistas em um mercado que gera renda e qualidade de vida”, diz o engenheiro florestal Amiraldo de Lima Picanço, presidente da Amazonbai.

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                Dois ribeirinhos descansam sobre o ancoradouro de madeira num dos braços de rio do Bailique. O lugar é um ponto de entrega do açaí coletado. “Talvez, à semelhança dos românticos, os caboclos ribeirinhos, em face do rio e da floresta, tenham tido e ainda têm lugar privilegiado para a descoberta de si mesmos”, frisou o escritor João de Jesus Paes Loureiro, em Meditação Devaneante entre o Rio e a Floresta - Cultura Amazônica Produtora de Conhecimento.  

                Foto de Maurício de Paiva

                A lamparina ilumina o diálogo entre ribeirinhos na casa integrada à agrofloresta de várzea, onde predominam os açaizais. Décadas atrás, os homens caçavam e derrubavam a mata sem refletir sobre o futuro. A partir dos anos 90, uma nova consciência começou a emergir no Bailique: conservar as matas e o ambiente, transformando exploração em reconexão para a salvaguarda das próximas gerações. Educação e resistência. O processo de decolonização, na Amazônia, começa de dentro para fora: tudo está na comunidade. 

                Foto de Maurício de Paiva

                A cooperativa, o Centro Vocacional Tecnológico (CVT) e o projeto da Escola Família Agroextrativista do Bailique (EFAB) são os três principais alicerces do Protocolo Comunitário. “Os acordos coletivos tiveram como meta a proteção do conhecimento tradicional e da biodiversidade. A autogestão é a base de uma melhor relação entre nós para, depois, aperfeiçoarmos a interação com a natureza e os atores externos”, diz Geová de Oliveira Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique (ACTB).

                “A educação de qualidade é um ponto primordial para o projeto. Uma geração capacitada precisa assumir no futuro. O plano inclui a permanência dos alunos em meio período na comunidade e meio período na escola”, relata.  

                Todas as 51 comunidades do Bailique hoje fazem parte da operação realizada pela Amazonbai. São 128 cooperados e mais de 2 mil pessoas envolvidas. A cooperativa processa 300 latas por dia, transformando 14 kg do fruto in natura em 4 kg de polpa por lata. São 480 toneladas processadas por ano – um total de 20 mil litros de polpa. O açaí é comercializado em sacas de 100 gramas e 1 kg na Amazônia e em estados como Rio de Janeiro e São Paulo.  

                Do Arraiol, partem cerca de 50 toneladas de açaí por ano. José Cordeiro dos Santos Lopes, o Zeca, conta que um dos maiores gargalos do projeto é o poder público, que nem sempre dá o suporte devido às organizações sociais diante do lobby poderoso do agronegócio. “A cooperativa é nossa, formada pelos moradores. Mas, com a falta de adesão dos órgãos gestores, demoramos mais para realizar os nossos sonhos”, diz. 

                O tempo, porém, é amigo dessas comunidades exemplares da costa do Amapá. Ali, o conhecimento ancestral protege o presente e projeta a floresta para o futuro. O açaí, entre outros frutos e plantas, não apenas integra uma cadeia produtiva sustentável: ele tem um valor simbólico importante, pois é parte da comida diária posta sobre a mesa das famílias. “As paisagens humanizadas da Amazônia são também paisagens gastronômicas”, diz a pesquisadora Laura Furquim. “A culinária tradicional é uma forma de resistência política”.

                Esta reportagem integra o projeto Amazônia: fogo contra fogo e foi produzida com o apoio do fundo para o jornalismo voltado a Florestas Tropicais, em parceria com o Pulitzer Center.

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