
Quando os gatos foram domesticados? Novas evidências de DNA mudam a história
Um gato selvagem africano (Felis lybica) descansa sobre uma rocha no Parque Nacional Kruger, na África do Sul.
De lojas urbanas a ilhas remotas, os gatos estão em toda parte. Mas determinar onde e quando os humanos adotaram pela primeira vez os felinos selvagens tem se mostrado complicado.
Até agora, os cientistas se concentraram na África e no Oriente Médio, onde são encontrados os gatos selvagens que deram origem aos animais de estimação modernos. Achados arqueológicos e trabalhos recentes sobre genética antiga levaram muitos pesquisadores a levantar a hipótese de que os agricultores da Idade da Pedra domesticaram gatos há quase 10 mil anos no Oriente Médio e levaram consigo os gatinhos caçadores de roedores quando se mudaram para a Europa.
Agora, uma nova análise de DNA de um vasto conjunto de restos mortais felinos antigos revela que os precursores dos gatos domésticos modernos se originaram no norte da África e só chegaram à Europa há cerca de 2 mil anos. O novo estudo foi publicado na revista científica Science e financiado em parte pela National Geographic Society.
A descoberta da chegada tardia dos gatos domésticos é surpreendente, considerando o quanto os felinos são retratados na arte e nos artefatos antigos, de acordo com Leslie Lyons, geneticista felina da Universidade do Missouri, nos Estados Unidos, que não participou do novo estudo. Ela acredita que o novo trabalho fornece um dado crucial que ajudará os pesquisadores a decifrar o código mais amplo da domesticação dos gatos em outras partes do mundo.
“Os gatos ainda são misteriosos e estão revelando seus mistérios um bigode de cada vez”, afirma Leslie Lyons.
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O primeiro siamês (na foto, um par de gatos em Newton, Massachusetts) chegou aos Estados Unidos em 1879 como um presente do Consulado dos Estados Unidos em Bangcoc para Lucy Webb Hayes, esposa do Presidente Rutherford Hayes.
O enigma dos gatos domésticos
Os restos mortais de gatos antigos são relativamente raros nos registros arqueológicos. E pode ser difícil distinguir os restos mortais de felinos domésticos dos seus parentes selvagens — ao contrário dos cachorros, que desenvolveram várias características físicas, incluindo olhos de cachorrinho, que os diferenciam dos seus ancestrais semelhantes a lobos.
A evidência mais antiga do que parece ser um gato doméstico foi desenterrada em 2004, quando arqueólogos descobriram o esqueleto de um gato enrolado ao lado dos restos mortais de um homem em uma tumba em Chipre. Os dois datavam da nova Idade da Pedra, ou período Neolítico, por volta de 7.500 a.C., apoiando a teoria de que os gatos domésticos surgiram logo após o advento da agricultura no Mediterrâneo oriental.
A arte felina posterior do Egito, onde vários gatos eram retratados usando coleiras e algumas divindades possuíam características felinas, ilustra que os antigos egípcios também domesticaram gatos por volta de 2.000 a.C.
A genética antiga inicialmente apoiava essa linha do tempo, de acordo com o paleogeneticista Claudio Ottoni, um Explorador da National Geographic e autor sênior do novo estudo. Em 2017, ele foi coautor de um artigo que analisou o DNA mitocondrial de vários espécimes antigos de gatos e concluiu que os gatos domésticos inicialmente se dispersaram do Oriente Médio por volta de 6.500 anos atrás.
Mas Ottoni e seus colegas tinham o palpite de que o DNA mitocondrial não contava toda a história. Um animal herda o DNA mitocondrial da mãe, portanto essa assinatura genética preserva apenas a história evolutiva da linhagem materna. Uma visão mais completa vem do genoma do organismo, ou código genético. “Genomas completos oferecem uma resolução muito maior, pois combinam as ancestralidades de muitos indivíduos ao longo do tempo”, explica Ottoni, que trabalha na Universidade de Roma Tor Vergata, na Itália.
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Acredita-se que os gatos vejam o mundo de forma menos vibrante e em menos tons do que os humanos, embora eles claramente consigam ver suas próprias sombras, assim como este gatinho da foto.
A genética antiga revela o surgimento e a disseminação dos gatos domésticos
Para construir genomas de gatos domésticos, a equipe coletou material genético de 225 espécimes de gatos antigos e vários gatos selvagens modernos que vivem no norte da África e em Israel. Os cientistas então dataram por radiocarbono uma subseção dos felinos antigos, que abrangeu um período de mais de 10 mil anos. O trabalho rendeu 87 genomas de gatos antigos e modernos.
A análise da equipe revelou que os gatos antigos que viveram antes de 200 a.C. não eram os ancestrais dos gatos domésticos modernos. Em vez disso, esses felinos antigos eram geneticamente semelhantes aos gatos selvagens europeus modernos (Felis silvestris). Os pesquisadores propõem que esses gatos provavelmente espreitavam perto de comunidades neolíticas ou eram caçados por comida e peles, razão pela qual seus restos mortais aparecem em sítios arqueológicos.
Embora esses gatos provavelmente não fossem animais de estimação e vagassem livremente, eles conquistaram o carinho de algumas culturas da Idade da Pedra — um felino da Idade do Bronze da Sicília, na Itália, foi enterrado em um vaso em forma de sino, por exemplo.
A equipe descobriu uma conexão genética mais próxima entre gatos domésticos e felinos que viveram nos últimos 2 mil anos. Os restos mortais mais antigos de um gato doméstico ancestral na Europa continental datam do século 1 d.C., durante os primeiros dias do Império Romano.
De acordo com Jonathan Losos, biólogo evolucionista da Universidade de Washington em St. Louis (Estados Unidos), que não participou do novo artigo, confirma que a teoria anterior — de que os gatos se dispersaram há 6.500 anos — era imprecisa. A análise do genoma completo mostra que “essa migração não ocorreu”, diz Losos. Não é inédito que o DNA mitocondrial forneça informações enganosas sobre as relações evolutivas, afirma ele.
De acordo com Ottoni, o fato de os gatos terem se espalhado tanto em apenas 2 mil anos destaca a eficácia dos felinos em se adaptar ao mundo humano. Eles também foram ajudados pelo bom timing. “Os ambientes urbanos que se espalharam durante a era romana podem ter representado os cenários ideais nos quais os gatos podiam explorar melhor o nicho humano”, afirma o pesquisador italiano.
Esses primeiros gatos domésticos eram geneticamente semelhantes aos gatos selvagens africanos modernos vistos hoje na Tunísia. Isso forneceu evidências de que os antepassados dos gatos domésticos modernos se originaram no norte da África, em vez do Oriente Médio.
A equipe também concluiu que os felinos do norte da África são os ancestrais de uma população enigmática de gatos selvagens encontrados hoje na Sardenha, Itália.
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Os primeiros amantes de gatos
Os pesquisadores postulam que os primeiros gatos domésticos foram transportados pelas culturas fenícia e púnica, que mantinham uma rede de colônias comerciais em todo o norte da África, Sardenha (Itália) e sul da Península Ibérica. O povo púnico também era bem conhecido dos romanos, com quem travaram uma série de guerras que culminaram na destruição da antiga Cartago em 146 a.C.
Quando os gatos domésticos chegaram à Europa, sua disseminação foi auxiliada pelas conquistas militares romanas. Os pesquisadores confirmaram que os restos mortais felinos encontrados em locais militares romanos na Áustria, Sérvia e Grã-Bretanha estavam todos intimamente ligados aos gatos domésticos modernos.
O DNA antigo está ajudando a investigar outras migrações de gatos domésticos na História mundial. Uma equipe diferente de pesquisadores analisou material genético de pequenos ossos felinos desenterrados na China e descobriu que os gatos domésticos chegaram ao Leste Asiático há 1.400 anos, juntamente com comerciantes do Oriente Médio que atravessavam a Rota da Seda.
As novas descobertas, publicadas na revista científica Cell Genomics, também revelam que esqueletos felinos muito mais antigos representam gatos-leopardos locais. Embora não fossem totalmente domesticados, esses felinos começaram a frequentar comunidades neolíticas para se alimentar há cerca de 5.400 anos.
Para entender melhor como as comunidades do Norte da África domesticaram os gatos pela primeira vez, a equipe de Ottoni planeja examinar a genética de amostras antigas de toda a região, incluindo gatos mumificados do Egito.
De acordo com Losos, extrair DNA antigo dessas múmias notoriamente frágeis poderia reescrever ainda mais os capítulos iniciais da épica evolução dos gatos domésticos. O DNA de felinos norte-africanos com mais de 2 mil anos “é essencial para determinar onde e quando o gato doméstico evoluiu”, conclui ele.
Lyons concorda, mas enfatiza que interpretar o DNA antigo é um desafio. “Sequenciar o DNA antigo é um trabalho complicado”, afirma ela. “É um pouco como lutar contra um gato selvagem africano.”