O lado sombrio das Olimpíadas: um raio-x de momentos em que o espírito olímpico passou longe dos jogos
O espetáculo esportivo mundial das Olimpíadas modernas não é feito só de glórias e belas imagens, já vivenciou momentos obscuros manchados pelo racismo, sexismo e deslocamento de pessoas.
Os antigos jogos olímpicos na Grécia provavelmente não incluíam revezamento de tochas. Nesta foto, a tocha olímpica passa por Brasília a caminho do Rio de Janeiro, no Brasil, para os jogos realizados na cidade brasileira em 2016.
O mundo acompanha os Jogos Olímpicos 2024 em Paris, na França. Paris se preparou por anos para receber pela terceira vez os jogos na capital francesa, inclusive abraçando um audacioso projeto de limpeza do rio Sena. "Nosso objetivo é um legado olímpico", diz Pierre Rabadan, vice-prefeito responsável pelo esporte, pelos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos e pelo Sena. "Que você, eu ou quem quer que esteja em Paris possa nadar no rio Sena."
O país europeu investiu alto para sediar os Jogos Olímpicos, com obras que vão desde a tentativa de despoluição do rio Sena e organização de arenas a construção da vila olímpica. Porém, segundo o site oficial do evento, o retorno financeiro também será grande, pois Paris espera receber entre 2,3 e 3,1 milhões de visitantes, com muitos franceses entre eles, claro. E estima-se que 2,6 bilhões de euros serão gastos pelos turistas durante as Olimpíadas, de acordo com o Escritório de Turismo de Paris.
Em 2016, a primeira cidade da América do Sul a receber uma Olimpíada foi o Rio de Janeiro, no Brasil, que custou ao governo brasileiro na época, quase 12 bilhões de dólares, sendo cerca de 2 bilhões dólares somente em segurança. Regiões inteiras da cidade foram reconfiguradas, novos sistemas de transporte foram construídos e dezenas de milhares de pessoas foram desalojadas.
Esse espetáculo gigantesco está a anos-luz da visão original do Barão Pierre de Coubertin, o aristocrata francês que fundou as Olimpíadas modernas, diz David Goldblatt, autor do livro “The Games: A Global History Of The Olympics” (em tradução livre, “Os Jogos: Uma História Global das Olimpíadas”).
Falando de sua casa em Bristol, Inglaterra, o escritor David Goldblatt explica a National Geographic como a própria escala e o custo das Olimpíadas de hoje podem significar sua ruína; por que as mulheres não tinham permissão para competir em eventos de pista de atletismo além da corrida dos 200 metros até 1968; entre outros temas nada fáceis sobre os Jogos Olímpicos modernos.
Capa do livro de David Goldblatt, “The Games: A Global History Of The Olympics”.
Propinas, corrupção, trapaças políticas… estou falando da Fifa, o órgão dirigente do futebol mundial. Mas será que essa também é uma boa descrição do Comitê Olímpico Internacional (COI)?
Sim, essa é uma descrição muito boa do COI. Para ser justo com a instituição, seu último grande colapso ocorreu no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando o escândalo de Salt Lake City estourou. Descobriu-se que Salt Lake City, nos Estados Unidos, que ganhou os Jogos de Inverno de 2002, havia feito uma extraordinária variedade de pagamentos aos membros do COI – desde tratamento para o joelho ruim de alguém até a troca de casas – para garantir seus votos.
No nível da corrupção pura e simples – como a aceitação de subornos para a concessão de direitos de televisão ou de hospedagem, o que vem ocorrendo na Fifa – o COI está praticamente livre desses problemas. Os problemas do COI são as Olimpíadas em si. A grande escala e o custo dos jogos e os terríveis custos que invariavelmente são suportados pelas pessoas mais pobres que vivem nas cidades-sede são o ponto fraco do COI no momento.
Vamos voltar ao início. Apresente-nos o “pai das Olimpíadas”, o Barão de Coubertin, e mapeie sua visão dos Jogos Olímpicos modernos.
O Barão de Coubertin foi um aristocrata francês nascido em uma família jesuíta católica rigorosa, que cresceu no mundo da Terceira República Francesa, quando o propósito de um aristocrata não era mais claro. Ele era um homem em busca de uma missão. Nas culturas esportivas emergentes da América do Norte e da Grã-Bretanha, ele se depara com a contribuição do esporte para a transformação das nações e da humanidade. Acima de tudo, o que ele encontra lá é a ideia do “cavalheiro aristocrata esportivo amador”.
Quando ele teve a ideia de reinventar os antigos jogos de Olímpia, na Grécia, em uma roupagem moderna, sua visão era criar uma demonstração de virtude masculina – uma frase incrível, mas foi assim que ele a descreveu [risos] – na qual o brilho moral, atlético e físico dos cavalheiros esportistas amadores proporcionaria não apenas o esprit de corps e a energia de que eles precisavam para continuar e governar seus vários impérios, mas também um exemplo de elevação para o resto de nós.
O que sabemos sobre as Olimpíadas originais da Grécia antiga?
Sabemos muito sobre os jogos antigos. Não tanto quanto gostaríamos e, provavelmente, muito mais do que Coubertin teria à sua disposição. Os jogos olímpicos do mundo antigo aconteciam a cada quatro anos no santuário de Olímpia. Cinco por cento dos homens nascidos livres do mundo helênico iam até lá.
A maioria dos atletas antigos ficava na vila olímpica original, que, em vez dos ambientes luxuosos de hoje, era uma espécie de vila de barracas cercada pelo terrível calor empoeirado de agosto na Grécia. Sabemos, pelos escritos da época, que também havia infestações de insetos.
Acima de tudo, era um evento religioso. O Templo de Zeus era o centro das atenções, e as oferendas ao deus Zeus eram parte integrante dos jogos. Mas a ideia de amadorismo, tão defendida por Coubertin, não existia. Muitas das pessoas que competiam nos jogos antigos eram, de fato, atletas profissionais.
Você voltava dos jogos com louros e prêmios, além de status, cargos públicos e uma grande variedade de prêmios em dinheiro. A ideia de que esse era o lar do amadorismo cavalheiresco há 2500 anos é, receio dizer, um mito.
(Sobre o tema, leia também: Qual é a origem das Olimpíadas? O maior evento esportivo do mundo)
As Olimpíadas são uma lente importante para visualizar questões de etnia e raça. Conte-nos sobre os bizarros “jogos tribais” em St. Louis, nos Estados Unidos, em 1904.
Os vergonhosos jogos de antropologia, ou dias de antropologia, como eram chamados, foram uma criação do então departamento de antropologia da Feira Mundial de St. Louis, nos Estados Unidos, para o qual as Olimpíadas eram apenas um espetáculo esportivo paralelo. Na época, havia um debate na comunidade atlética e antropológica sobre se as pessoas negras dos países colonizados eram atletas naturais.
Então, eles pensaram em fazer alguns experimentos para provar a veracidade dessa antropologia racista. Eles reuniram pessoas de diferentes origens étnicas e fizeram com que elas praticassem esportes olímpicos e, em seguida, testaram seus tempos e desempenhos em comparação com atletas americanos brancos e universitários.
Foi uma farsa. Dois dias antes da realização dos eventos, eles ainda estavam planejando eventos de natação para um grupo de pessoas que não sabiam nadar.
Leni Riefenstahl filmou os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, na Alemanha, a pedido de Hitler. Aqui, Riefenstahl (sentada ao lado da câmera) e sua equipe focam em Archie Williams, um norte-americano que ganhou a medalha de ouro na corrida de 400 metros.
Os jogos de Berlim de 1936 ficaram famosos pelo filme de propaganda Olympia, de Leni Riefenstahl. Explique sua importância.
É importante lembrar como era extraordinário ter um registro visual que tentasse capturar algo da grandiosidade do evento, como a TV faz hoje. Esse é um dos principais motivos pelos quais as Olimpíadas são tão importantes. Se não fossem transmitidas pela TV, elas teriam uma fração do interesse que têm.
O filme era a tecnologia daquele momento e Leni Riefenstahl traz um nível de conhecimento técnico e visão estética que nenhum dos noticiários chega perto. Apesar de toda a sua posição política problemática, sua proximidade e apoio à ideologia nazista, o filme é tecnicamente um triunfo estético extraordinário.
(Você pode se interessar: A brutal história das Olimpíadas Populares de 1936)
As Olimpíadas têm sido um motor da igualdade de gênero. Fiquei surpreso ao ler que, até 1968, as mulheres não podiam competir em provas de corrida com mais de 200 metros. Conte-nos um pouco.
Foram os homens que criaram o COI e sua visão do esporte era estritamente masculina. O barão de Coubertin é conhecido por dizer que os Jogos Olímpicos deveriam ser reservados apenas para os homens e que a recompensa por seu desempenho deveria ser o aplauso educado das mulheres [risos].
Em 1924, havia menos de 100 mulheres nos jogos, limitadas principalmente à natação, mergulho e tênis. Amsterdã, em 1928, é um grande avanço, com os primeiros eventos femininos de atletismo.
As Olimpíadas não incluíram uma maratona feminina até os jogos de 1984 em Los Angeles. Joan Benoit, acima, ganhou o ouro.
Mas há uma insistência de que não pode haver eventos de longa distância no atletismo com mulheres. Os 800 metros se tornaram famosos porque as duas mulheres que chegam em primeiro e segundo lugar ficam completamente exaustas quando cruzam a linha. Isso foi considerado tão inaceitável e perigoso para a saúde da mulher que o COI disse: “Certo, nada de eventos femininos acima de 200 metros”. Foi somente em 1968 que isso mudou e somente em 1984 que as mulheres correram a maratona.
Hoje, estamos nos aproximando de 50% de paridade nas Olimpíadas. E, para mim, uma das coisas mais empolgantes da história das Olimpíadas é ver a longa evolução e a luta, em termos de raça, gênero e deficiência, desde o que começou como um jogo para homens brancos aristocráticos até se tornar verdadeiramente os jogos da humanidade.
Estima-se que entre 35 mil e 70 mil pessoas no Rio de Janeiro tenham sido desalojadas, muitas vezes à força, para abrir caminho para a construção das instalações olímpicas para as Olimpíadas de 2016. Acima, uma casa parcialmente demolida oferece uma vista do Estádio Aquático – hoje, abandonado.
Os jogos de Pequim em 2008 marcaram por conta de ter provocado um grande deslocamento de populações urbanas. Fale sobre essa situação de Pequim e se ocorreu em outros locais.
Quando os Jogos Olímpicos de Pequim, na China, foram realizados, em 2008, as autoridades chinesas aproveitaram a oportunidade para reformar completamente a cidade, o que foi um dos motivos pelos quais os jogos custaram 40 bilhões de dólares. Uma das características da transformação de Pequim foi a dizimação dos hutongs, as ruas antigas e tradicionais, muitas vezes com falta de saneamento e superlotação, mas com grande parte da atmosfera e intimidade da cidade antiga.
Muitas delas foram varridas para criar formas insípidas de desenvolvimento modernista, que excluem as pessoas e criam espaços neutros e mortos dentro da cidade. Isso também envolveu o deslocamento de cerca de meio a um milhão de pessoas.
Há uma longa tradição nesse sentido nos Jogos Olímpicos. Mesmo nos jogos em que houve um nível menor de construção, houve um esforço muito determinado para efetivamente limpar socialmente a cidade olímpica dos sem-teto, viciados em drogas ou vagabundos. A Olimpíada de Atlanta em 1996, nos Estados Unidos, não construiu muito, mas ainda assim conseguiu deportar 25 mil pessoas sem-teto e fechar a maioria das instalações da cidade para os sem-teto.
No contexto do Rio de Janeiro, houve 100 anos de luta pela terra. Por muitas gerações, as pessoas ocuparam as terras mais difíceis e inacessíveis para construir suas próprias comunidades nos morros, embora quase sempre sem infraestrutura, saneamento ou policiamento. Os números variaram, mas foi cerca de 35 mil e 70 mil pessoas foram deslocadas durante ao longo da preparação para os jogos do Rio.
O problema não é apenas o deslocamento, mas a forma como ele ocorre. O uso da força e da intimidação é generalizado, e os acordos oferecidos às pessoas são quase sempre bem abaixo dos preços de mercado. Em um certo nível, acredito nesses grandes festivais cosmopolitas da humanidade. Mas não podemos continuar a comprá-los às custas da falta de moradia das pessoas e de suas comunidades.