Como está Chernobyl hoje? Os “cães radioativos” da Zona de Exclusão ajudam a entender os efeitos da radiação

Esses cachorros circularam e se reproduziram pela área de Chernobyl por gerações. Agora, os cientistas acreditam que seu DNA pode transformar o que já se sabe sobre os efeitos da radiação.

Por Sharon Guynup
Publicado 24 de abr. de 2025, 07:10 BRT
Cachorros de Chernobyl

Em 26 de abril de 1986, a usina nuclear de Chernobyl explodiu, causando o pior acidente radioativo do mundo. Em 2017, o fotógrafo Mike Hettwer foi à Zona de Exclusão de Chernobyl com o grupo de bem-estar animal Clean Futures Fund para esterilizar e castrar cães de rua. Na maioria das noites, os cães se reuniam perto da entrada da estrutura de 2 bilhões de dólares do Novo Confinamento Seguro que cobre o reator danificado. Os veterinários do CFF também coletaram amostras de sangue que fizeram parte de uma pesquisa de DNA de ponta publicada pela revista científica “Science Advances”. O estudo revelou que os cães são descendentes dos que estavam presentes no momento do acidente. O DNA dos cães pode ajudar a entender melhor os efeitos de longo prazo da radiação sobre a saúde e a genética humanas.

Foto de Mike Hettwer

Quando o professor e pesquisador norte-americano Timothy Mousseau chegou à Usina Nuclear de Chernobyl, em 2017, um dos locais mais radioativos do mundoa população de cães de rua na área havia aumentado para cerca de 750. Supunha-se que os cães eram descendentes daqueles abandonados após as explosões e o incêndio devastadores de 26 de abril de 1986 na usina, considerado o pior acidente radioativo da história

Em 36 horasas autoridades soviéticas evacuaram 350 mil residentes de Pripyat, cidade a apenas três quilômetros de distância, alguns apenas com a roupa do corpo. Neste momento trágico, as pessoas foram forçadas a deixar seus amados animais de estimação para trás e muitas nunca mais voltaram para a Zona de Exclusão de Chernobyl, uma região com mais de 2.500 quilômetros quadrados.

turista em Chernobyl

Um turista coloca uma máscara de gás para tirar uma selfie perto do arco de contenção. A radiação – revelada nesta imagem composta por uma câmera gama exclusiva – ainda emana de materiais contaminados, mas a visita por breves períodos é segura. Os turistas frequentemente alimentavam os cães antes da invasão russa à Ucrânia.

Foto de Mike Hettwer (With Willy Kaye, H3D)

Mousseau, biólogo evolucionista da Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, estava fazendo parceria com uma equipe do Clean Futures Fund (CFF), organização sem fins lucrativos estadunidense, que viajou para a Ucrânia para estabelecer um programa de esterilização/neutralização dos cães locais, bem como de vacinação para controlar sua população. 

O pesquisador também foi coletar amostras de sangue e tecidos para análise de DNA, já que vinha realizando estudos sobre a vida selvagem em Chernobyl desde o ano 2000. Esse projeto ofereceu um laboratório vivo para a busca de mutações genéticas induzidas por radiação em um grande número de animais. Ele agora está participando de quatro missões de 2017 a 2022, com planos de retornar outra vez em 2023.

De olho no Dia Internacional da Memória do Desastre de Chernobyl – uma efeméride instituída pela Assembléia Geral das Nações Unidas  8 de dezembro de 2016 – National Geographic traz os resultados dessa investigação científica e como ela impacta o que se sabe sobre os efeitos da radiação nos seres vivos. 

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    Cães em Chernobyl

    Cães aguardam por restos de alimentos do lado de fora do refeitório dos trabalhadores. “Com esses avanços na genética molecular, podemos recriar o pedigree real desses animais. Podemos dizer quem era a mãe, quem era o pai, quem eram os primos, quem eram os tios e, por causa disso, agora podemos fazer uma avaliação muito rigorosa do que chamamos de taxas de mutações de novo”, disse Mousseau. Os pesquisadores esperam usar esses pedigrees para discernir quais mutações surgiram e se elas estão relacionadas à exposição à radiação.

    Foto de Mike Hettwer
    cachorros cuidados Chernobyl

    Os cachorros passaram a gostar muito de uma trabalhadora de Chernobyl que os alimentava todas as manhãs. A comida e os cuidados de quem atua na região ajudaram esses animais a sobreviver em um ambiente extremamente hostil.

    Foto de Mike Hettwer

    Decifrando o DNA dos cães de Chernobyl 

    Elaine Ostrander, que dirige o “Projeto Genoma do Cão” no Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano, veio a bordo para sequenciar as amostras de DNA. Sua recente publicação na “Science Advances” caracteriza a estrutura genética de 302 cães de raças mistas que circulam livremente e decifrou seus pedigrees, identificando 15 famílias diferentes, algumas grandes, outras pequenas.

    Esses resultados fornecem dados preliminares e de base para um projeto de vários anos que explorará como a exposição crônica à radiação afetou a genética dos cães. Mousseau e Ostrander perceberam que a primeira etapa era entender a populaçãoquem era quem e onde os cães viviamjá que os níveis de radiação variam muito. Assim, Mousseau incluiu a localização de onde cada cachorro foi capturado quando coletou as amostras de sangue.

    Esses cães de Chernobyl são valiosos para a ciência porque viveram e evoluíram em isolamento por 15 gerações desde o desastre. Eles morrem jovens, com três ou quatro anos de idade; mas o normal para cachorros de cerca de 35 quilos, por exemplo, é viver entre 10 a 12 anos.

    Como eles não passam muito tempo no pool genético, Ostrander levanta a hipótese de que “o que quer que tenha acontecido no genoma que permitiu que esses cães sobrevivessem nesse ambiente bastante hostil provavelmente são [mutações emgenes muito grandes e importantes que fazem coisas muito importantes”.

    Ao identificar as famílias, eles podem procurar diferenças entre a prole e os pais. As mutações – ou o potencial para mutações – podem ser transmitidas de ancestrais que sobreviveram à explosão em 1986.

    A pesquisa tem o potencial de transformar o conhecimento sobre os efeitos da radiação nos mamíferos, inclusive nos seres humanos, afirmam os pesquisadores.

    “Em última análise, queremos saber o que aconteceu com o DNA genômico que permitiu que [os cachorrosvivessem, se reproduzissem e sobrevivessem em um ambiente radioativo”, diz Ostrander. 

    veterinarios em Chernobyl

    Os veterinários usaram zarabatanas para sedar os cães para a captura. A castração e a esterilização, os exames de sangue, o exame de radiação, a pesagem e todos os cuidados médicos foram administrados em uma área cirúrgica. A droga usada para dar o dardo era inofensiva e os efeitos desapareciam após algumas horas.

    Foto de Mike Hettwer

    Cães abandonados em uma paisagem radioativa 

    desastre de Chernobyl lançou 400 vezes mais material radioativo na atmosfera do que a bomba atômica lançada sobre Hiroshima, no Japão. Os ventos distribuíram essa radioatividade em uma colcha de retalhos de alta e baixa intensidade.

    Agora, mais de 35 anos após o acidente, a maior parte da radiação vem do césio e do estrôncio de vida longa, mas outros radionuclídeos, como o plutônio e o urâniotambém estão no solo. As partículas radioativas emitem energia poderosa o suficiente para arrancar elétrons das moléculas dentro das células. Isso pode romper as ligações químicas no DNAcausando mutações

    As células, por sua vez, têm mecanismos para reparar os danosmas as mutações podem provocar câncerreduzir a expectativa de vida e prejudicar a fertilidade.

    cachorros sedados Chernobyl

    Depois de atirar os dardos com tranquilizantes nos cachorros, os veterinários precisavam localizar os animais rapidamente, pois o sedativo era de ação rápida e os animais adormeciam em poucos minutos.

    Foto de Mike Hettwer
    animais de Chernobyl

    Depois que os cães eram alvejados com dardos, os animais eram gentilmente colocados na parte de trás de uma van para serem transportados para o prédio cirúrgico improvisado para tratamento.

    Foto de Mike Hettwer

    O livro “Vozes de Chernobyl” (à venda no Brasil), da escritora bielorrussa Svetlana Alexievich e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2015, reconstruiu os aterrorizantes primeiros dias do desastre por meio da história oral, incluindo o trauma que as pessoas sofreram quando tiveram que abandonar seus animais de estimação. 

    “Famílias desoladas pregaram bilhetes em suas portas: ‘Não mate nossa Zhulka. Ela é uma boa cachorra’. Uma pessoa se lembrou de cães uivando, tentando entrar nos ônibus. Mongóis, alsacianos. Os soldados os empurravam para fora novamente, chutando-os. Eles correram atrás dos ônibus por muito tempo”.

    Logo depois, chegaram os esquadrões militares. Eles mataram os cães para limitar a disseminação da contaminação radioativa e de doenças. Alguns escaparam de seus carrascossobrevivendo nas florestas ao redor da usina e perto de Pripyat.

    Em 2010, foi iniciada a construção de uma nova estrutura de confinamento seguro sobre o reator danificado. Milhares de trabalhadores chegaram ao local. Na mesma época, Chernobyl tornou-se um destino de turismo de desastres”. Os cães migraram para essas áreas e as pessoas os alimentaram. Como seu número cresceu rapidamente, a preocupação com a raiva aumentou.

    Clean Futures Fund, fundado em 2016 para oferecer apoio e assistência médica a comunidades afetadas por desastres, percebeu que os cães também precisavam de ajuda. Depois que a Autoridade de Gerenciamento da Zona de Exclusão concedeu permissão para fornecer aos cães cuidados veterinários e controle populacional, a equipe veterinária do CFF montou um hospital improvisado em um dos prédios antigos. Mousseau, por sua vez, também armou um laboratório e acompanhou os veterinários durante os procedimentos.

    caes radioativos de chernobyl

    Um veterinário mede os níveis de radiação de um cão sedado usando um dispositivo cintilador. Após a descontaminação, os cães foram esterilizados ou castrados, pesados, tiveram o sangue coletado e receberam qualquer tratamento médico necessário.

    Foto de Mike Hettwer

    O trabalho de campo dos veterinários e pesquisadores em Chernobyl

    Jennifer Betz, a veterinária que agora dirige o programa, descreveu seu processo. “Capturamos os cães, esterilizamos, vacinamos, colocamos microchips, etiquetamos... e Tim tem colocado dosímetros em seus brincos. Depois, nós os soltamos no local de onde vieram para que possam viver suas vidas da forma mais feliz e saudável possível.” A equipe também fornece os cuidados médicos necessários.

    Esses cães não podem ser removidos da zona, diz ela, “porque podem carregar quantidades significativas de contaminantes radioativos, seja em seus pelos ou em seus ossos”.

    Houve, no entanto, uma exceção. Em 2018, 36 filhotes cujas mães haviam morrido receberam permissão especial da Autoridade de Gerenciamento da Zona de Exclusão para serem removidos para salvá-los ou então eles não teriam sobrevivido. 

    Os filhotes foram descontaminados e adotados por famílias nos Estados Unidos e no Canadá. Eles haviam sido expostos à radiação no útero e por três a quatro semanas antes de serem resgatados. A equipe acompanhará esses cães pelo resto de suas vidas, observando se há tumores, doenças como tipos de linfomas ou outros problemas de saúde.

    Às vezes, os pesquisadores recuperam dosímetros usados durante meses ou anos, o que revela a exposição total. Os cães que vivem ao redor do reator sofrem radiação milhares ou dezenas de milhares de vezes maior do que os níveis normais, diz Erik Kambarian, cofundador e presidente do Clean Futures Fund.

    dogs Chernobyl

    Após a conclusão dos testes e da cirurgia, os cães foram transferidos para uma sala de recuperação. Quando acordaram e o efeito da anestesia passou, eles foram liberados de volta à área de Chernobyl.

    Foto de Mike Hettwer
    Novo confinamento Chernobyl

    A estrutura do Novo Confinamento Seguro foi montada para conter os restos da unidade do reator número 4. A análise de DNA mostrou que os cachorros que vivem ao redor dessa estrutura – e estão expostos aos mais altos níveis de radiação – são geneticamente distintos de duas outras populações locais.

    Foto de Mike Hettwer

    Identificando os sobreviventes caninos e mapeando as mutações genéticas

    A análise de Ostrander identificou duas populações distintas de cães, com uma genética surpreendentemente individual e pouco fluxo gênico entre elas. Cerca de metade vive nas proximidades da usina de energia altamente radioativa, incluindo três famílias que vivem em uma instalação de armazenamento de combustível nuclear usado. 

    O outro grupo de cachorros perambula pela cidade de Chernobyl, que está menos contaminada, cerca de 15 quilômetros de distância, onde vivem os trabalhadores; essa população humana é muito menor desde a conclusão da nova estrutura de contenção. Algumas amostras vieram de cães a até 46 quilômetros de distância, em Slavutych.

    Ostrander não apenas sequenciou os genomas dos cães, mas também identificou suas raças, o que lhe permite comparar a genética desses cães com a de outros semelhantes que vivem em outras áreas não irradiadas. Ambas as populações carregavam DNA de pastores alemães e de outras raças de pastores do Leste Europeu

    Os cães da cidade de Chernobyl parecem ter se reproduzido com animais trazidos por trabalhadores, carregando genes de boxer e Rottweiler.

    Esse é o primeiro estudo desse tipo feito sobre os grandes mamíferos de Chernobyl, observa Andrea Bonisoli-Alquati, biólogo da Universidade Politécnica do Estado da Califórnia, em Pomona, Estados Unidos, que trabalha em Chernobyl, mas não participou desse estudo.

    Ele acrescenta que o estudo está fornecendo ferramentas e métodos genéticos importantes para estudar grandes populações – e conhecimento fundamental sobre como as mutações genéticas estão relacionadas a doenças, principalmente em vertebrados.

    As próximas etapas são analisar quais partes do genoma mudaram nos últimos anos, diz Mousseau. A equipe espera responder a muitas perguntas. O que deve acontecer para que os filhotes nasçam vivos e possam crescer? Os genes que sofreram alterações coincidem com o que sabemos sobre os efeitos da radiação? Há alterações nos genes envolvidos no reparo do DNA, no metabolismo, no envelhecimento ou em novas respostas que permitiram que os cães sobrevivessem? Em que níveis os danos significativos começam a se manifestar?

    A esperança é que esses cães – e essa pesquisa – nos ajudem a entender melhor os riscos associados à exposição à radiação.

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