Centenas de soldados chegam ao comício organizado pelo então Presidente João Goulart no Rio de Janeiro, ...

“Ainda Estou Aqui”: a angustiante história real por trás do filme que conquistou o coração do mundo

O filme indicado ao Oscar e estrelado por Fernanda Torres narra os verdadeiros fatos históricos envolvendo um ex-legislador brasileiro sequestrado durante a Ditadura Militar mais longa da América Latina.

Centenas de soldados chegam ao comício organizado pelo então Presidente João Goulart no Rio de Janeiro, Brasil, em 13 de março de 1964. O comício foi supostamente uma das razões por trás do golpe de Estado de 1964 que levou à ditadura militar brasileira que durou 21 anos.

Foto de Archive, Agência Estado, AE
Por Mac Margolis
Publicado 28 de fev. de 2025, 14:15 BRT

Em uma manhã quente de janeiro de 1971agentes de segurança à paisana bateram à porta da casa à beira-mar do ex-deputado brasileiro Rubens Paiva, no Rio de Janeiro. Colocado em seu carro, Paiva foi levado sob escolta armada e nunca mais foi vistodeixando sua esposa e seus cinco filhos para cuidar de tudo. Esse é o enredo geral de “Ainda Estou Aqui", filme do diretor Walter Salles com Fernanda TorresSelton Mello, o filme indicado em três categorias do Oscar 2025 que se passa durante o regime militar brasileiro

Mas, ao contrário de se deter nas masmorras dos ditadores e nos horrores viscerais da violência patrocinada pelo Estado, o diretor Walter Salles inverte a narrativa.

Em vez disso, o filme se foca em Eunice Paiva, a esposa que se torna viúva, e pressiona incansavelmente a obtusa junta militar por justiça nas cinco décadas seguintes, mesmo enquanto luta para sustentar uma família dividida. É uma janela íntima para a angústia, a perda e a resiliência coletivas do Brasil.

A história de fundo não é menos angustiante.

Os arquivos do Departamento de Estado da Ordem Política e Social no Brasil contém pastas que ...

Os arquivos do Departamento de Estado da Ordem Política e Social no Brasil contém pastas que detalham todas as investigações de civis, grupos sociais e movimentos sociais durante os 21 anos de ditadura militar no país. São 13.500 pastas incluídas nos arquivos.

Foto de Lianne Milton, Panos Pictures, Redux

As características da Ditadura Militar brasileira, a mais duradoura da América Latina

O caminho para o mais importante período de governo marcial do Brasil começou com as ambições internacionais frustradas do país após a Segunda Guerra Mundial.

Tendo se juntado ao Ocidente em sua guerra contra as potências do Eixo e até mesmo enviado tropas de combate para a Europaa classe política do Brasil foi prejudicada pela indiferença percebida pelos Estados Unidos no pós-guerra, principalmente pela recusa em apoiar a candidatura brasileira a um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

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    Homens não identificados detêm um estudante durante um protesto em São Paulo, Brasil, em 9 de outubro de 1968. O pior da violência durante o regime militar do país começou em 1968 e só piorou após a ascensão de Emílio Garrastazu Médici, em 1969.

    Foto de Agência Estado, AP Photo

    O fato de ser ignorado alimentou a busca do Brasil por uma política externa independente, com um nítido viés antiamericano. Era a época da Guerra Fria, e o pivô disparou alarmes entre os militares cada vez mais inquietos, que manobraram para conter o presidente João Goulartde esquerdaO Congresso recuou, empurrando o Brasil ainda mais para uma crise constitucional

    Em 31 de março de 1964os tanques estavam rolando nas ruas. Goulart estava fora e a lei marcial estava em vigor, com as bênçãos dos Estados Unidos.

    Pelos padrões brutais dos tiranos sul-americanos, os 21 anos de regime militar no Brasil podem parecer quase brandos. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade documentou 434 baixas – contando os que foram assassinados ou desapareceram – sob cinco governantes militares sucessivos

    Cerca de 2 mil pessoas foram torturadas. Em contraste, a ditadura chilena assassinou ou “desapareceu” cerca de 3 mil dissidentesaprisionando outros 38 mil, enquanto cerca de 10 mil a 30 mil foram mortos ou desapareceram durante a selvagem “Guerra Suja” da Argentina.

    No entanto, o sequestro e o assassinato de Rubens Beyrodt de Paiva foi uma reviravolta terrível no que viria a se tornar a ditadura militar mais duradoura da América Latina.

    (Leia também: Os 5 fatos para entender bem o que foi a Guerra Fria)

    A vida dos brasileiros sob o regime militar linha dura

    Na época em que Paiva foi sequestradoo generalíssimo no comando era Emílio Garrastazu Médici, o terceiro de cinco militares a comandar o país e o mais duro da linha dura do regime.

    primeiro líder da junta, Humberto Castello Branco, chegou ao poder prometendo restaurar a democracia. O segundoArthur Costa e Silva, falou em “humanizar a revolução”, depois defenestrou o Congresso por decreto presidencial e sucumbiu a um derrame fulminante em 1969.

    Médici, por sua vez, foi eleito naquele ano por uma legislatura controlada de perto, que a junta havia convocado às pressas para dar um toque de legitimidade à sua nomeação. Ele assumiu o comando em meio a uma crescente agitação, sem escrúpulos em impor um decreto autoritário. Seu astuto ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, estimulou o crescimento com gastos generosos, um jorro de investimentos estrangeiros e dinheiro fácil de credores internacionais ansiosos para lucrar com a bonança brasileira. 

    O resultado foram as forças armadas brasileiras no auge da arrogância, encorajadas pelo chamado “Milagre Brasileiro” (cinco anos consecutivos de crescimento econômico sem precedentes), pelas glórias de uma terceira vitória na Copa do Mundo e pela Guerra Fria liderada pelos Estados Unidos contra o comunismo global.

    Médici supervisionou a mais severa repressão às liberdades democráticas até então, incluindo a censura total à imprensa. Quando os jornais não eram incendiados ou fechadosos censores ficavam à espreita nas redações para apagar as verdades inconvenientes. Dezenas de jornalistas foram presos ou assassinados.

    Esses foram os “Anos de Chumbo” do Brasil, mais conhecidos pelo arrastão nacional que Médici lançou para capturar e matar opositores esquerdistas do regime. Os militantes mais estridentes pegaram em armas, assaltaram bancos e sequestraram autoridades de alto nível – inclusive o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, em 1969 – para pedir resgate.  

    Um menino observa soldados e um tanque durante um comício organizado pelo Presidente João Goulart antes ...

    Um menino observa soldados e um tanque durante um comício organizado pelo Presidente João Goulart antes do golpe militar de 1964. A ditadura militar governou por 21 anos, instituindo uma repressão sem precedentes às liberdades civis e um arrastão nacional para capturar e matar opositores esquerdistas do regime.

    Foto de Domício Pinheiro, Agência Estado, AE, AP Images

    Por que a história de Paiva em 'Ainda Estou Aqui' repercute

    Paiva não era um atirador de bombas. Esquerdista moderado, ele havia sido destituído de seu mandato no Congresso quando os militares assumiram o poder e, desde então, manteve-se afastado da política militante. Em vez disso, era um pai de família de meia-idade, um engenheiro civil bem-sucedido e um membro abastado do “bien pensant” brasileiro. Seu crime, aparentemente, foi ter servido como intermediário entre os exilados políticos brasileiros no Chile que se correspondiam com parentes e colegas no país.

    Os restos mortais de Paiva nunca foram encontradosnem ninguém foi responsabilizado por seu assassinato ou desaparecimento forçado – graças, em grande parte, à anistia geral para crimes políticos promulgada em 1979.

    Mas a pressão constante de Eunice Paiva ajudou a corroer a moral de um regime convencido de sua missão de salvar o país de insurrecionalistas ímpios. Sem suas décadas de perseverança e o rastro de documentos que ela deixou em sua incansável campanha para encontrar o maridoos brasileiros talvez nunca tivessem superado a frágil versão oficial do caso – de que Paiva teria sido supostamente sequestrado por terroristas – e muito menos imaginariam que o Estado um dia assumiria seu papel em sua morte violenta.

    Em vez de se curvar a homens fortes e inflexíveis, Eunice seguiu em frente, formou-se em Direito e passou a defender os direitos dos povos indígenas em perigo.

    “Os restos mortais de Paiva nunca foram encontrados, nem ninguém foi responsabilizado por seu assassinato ou desaparecimento forçado – graças, em grande parte, à anistia geral para crimes políticos promulgada em 1979”

    Tudo isso é um filme atraente, mas por que contar essa história agoraA ditadura brasileira terminou em 1985, três gerações de espectadores de cinema atrás. “Os jovens brasileiros não sabem nada sobre o período militar, exceto o que leem nos livros e ouvem dos mais velhos”, diz Octavio Amorim Neto, analista político e estudioso de história militar da Fundação Getúlio Vargas.

    O diretor Walter Salles aproveitou a deixa. Ele começou a pesquisar o filme há sete anos, no momento em que a política brasileira deu um salto abrupto para a direita e a fé na democracia começou a diminuir.

    Essa virada preocupante na política brasileira contemporânea é latente, mas nunca mencionada explicitamente no filme. No entanto, a resposta do público a “Ainda Estou Aqui” que já está entre os cinco filmes de maior bilheteria no Brasil e é o que mais faturou no exterior em 22 anos – transmite uma mensagem forte: embora os fantasmas da ditadura ainda possam pairaros brasileiros não estão dispostos a desviar o olhar.

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