O ano em que a Inglaterra cancelou o Natal
Motins, saques, atos desafiadores: saiba como foi quando os puritanos do Parlamento inglês proibiram o Natal, o que provocou revoltas em todo o país.
Uma árvore de Natal de quase 10 metros fica na Catedral de Salisbury, na Inglaterra. No século 17, as igrejas de todo o país foram proibidas de enfeitar os salões para o Natal – que os puritanos rejeitavam como um festival pagão coberto com um verniz cristão.
No dia de Natal de 1647, um tumulto eclodiu em Canterbury, uma cidade a cerca de 96 Km a sudeste de Londres, na Inglaterra. O fato motivador? O então prefeito William Bridge havia ordenado a prisão do dono de uma loja e tentado golpeá-lo na cadeia – tudo isso por ter fechado sua loja no feriado.
Uma multidão de espectadores se recusou a ficar parada sem fazer nada. Eles atacaram Bridge e depois começaram a se revoltar. Eles quebraram as vitrines das lojas que permaneceram abertas, saquearam-nas e rapidamente tomaram o controle de Canterbury. Eles até capturaram o depósito da cidade, onde a pólvora era armazenada. Um de seus atos menos violentos: pendurar azevinhos (enfeites típicos das árvores de Natal) pela cidade.
O motim de Natal em Canterbury foi uma batalha em uma guerra contra o Natal que ocorreu na Inglaterra do século 18 – e os cristãos foram os responsáveis por ela.
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Um feriado híbrido
Embora o Natal homenageie o nascimento de Jesus, os primeiros cristãos não comemoravam o feriado até o século 4, quando as tradições pagãs – como a Saturnália de Roma e, por fim, o Yule, um festival germânico do meio do inverno – começaram a se misturar com as crenças cristãs para criar um período alegre de folia.
No século 16, as pessoas na Inglaterra comemoravam o Natal por 12 dias, de 25 de dezembro até a Epifania, com desfiles, festas, canções de Natal e decorações de azevinho e velas. Mesmo depois que a Inglaterra se separou da Igreja Católica em 1534 e formou a Igreja Protestante da Inglaterra, o Natal continuou a ser uma época festiva muito apreciada.
No entanto, nem todo mundo abraçou o espírito do Natal. Os puritanos – ou protestantes – que queriam “purificar” a Igreja da Inglaterra, acreditavam que o Natal destacava tudo o que havia de errado com a igreja. Eles ficavam horrorizados com o fato de as pessoas comemorarem o feriado com todos os tipos de travessuras, como jogos de azar, esportes e desregramento, o que incluía bebidas alcoólicas e encenações.
A alegria do Natal era muito secular, muito católica e muito pagã para o gosto deles. “Os puritanos estavam certos quando apontaram – e apontaram com frequência – que o Natal não passava de um festival pagão coberto com um verniz cristão”, observou o historiador Stephen Nissenbaum em seu livro “The Battle for Christmas”.
Um cristão puritano repreende as crianças por colherem azevinho – um dos muitos costumes natalinos que os puritanos atacaram em sua busca para purificar a Igreja da Inglaterra.
De fato, a Bíblia – a principal fonte de verdade religiosa para os cristãos – não menciona o dia 25 de dezembro como o aniversário de Jesus, nem indicava que o dia de seu nascimento deveria ser comemorado.
A aversão ao Natal atingiu novos patamares durante o reinado do rei Carlos I, que assumiu o trono em 1625. Sua corte real sintetizou a decadência profana do feriado, celebrando o Natal grandiosamente com festas, música, dança, peças de teatro e máscaras.
A proibição do Natal
Os puritanos/protestantes não eram os únicos insatisfeitos com o rei Carlos I, que acreditava ter sido divinamente designado para governar. O rei insistia que sua autoridade superava a do Parlamento, o que lhe rendeu inimigos nesse órgão legislativo.
As tensões entre a coroa e o Parlamento inglês se transformaram em uma guerra civil em 1642. Os monarquistas pegaram em armas em defesa de Carlos; os parlamentares formaram seu próprio exército. Em 1645, os parlamentares haviam conquistado o controle - e agora eles, e não o rei, governavam grande parte da Inglaterra.
Os cristãos puritanos do Parlamento usaram sua autoridade para lançar um ataque em grande escala contra o Natal. Entre suas metas: garantir que nenhum serviço religioso fosse realizado no Natal e garantir que o dia 25 de dezembro fosse um dia útil.
Fechar as igrejas no Natal provou ser o curso de ação mais simples. Em 1645, o Parlamento emitiu o Directory of Public Worship, um novo texto que excluía o Natal como um feriado que exigia serviços religiosos.
Dois anos depois, o Parlamento foi além e proibiu toda e qualquer comemoração de Natal. O Parlamento até mesmo enviou seus soldados para derrubar decorações de Natal erguidas de forma desafiadora e interromper cultos clandestinos.
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Motins no Natal
Em geral, as pessoas comuns reagiram à proibição do Natal pelo Parlamento com uma mistura de descrença, raiva e desafio.
Como em Canterbury, as pessoas em várias cidades saíram às ruas para protestar contra as ações do Parlamento contra o Natal. Edmund e Ipswich no dia de Natal de 1647, quando muitos desafiaram a proibição oficial e tentaram obrigar os proprietários de lojas a manterem seus estabelecimentos fechados durante o feriado.
Nem todos os protestos se tornaram violentos. Os escritores usaram o poder da imprensa para criticar e ridicularizar a proibição em publicações a favor do Natal, como The World Turned Upside Down e o panfleto A Vindication of Christmas. Entre as queixas deste último, estava o fato de que a lei do Parlamento havia sitiado “nossa alta e poderosa Christmas-Ale, que anteriormente derrubaria Hércules e faria tropeçar os calcanhares de um gigante”.
A proibição abriu espaço para os monarquistas, que capitalizaram o sentimento pró-Natal do país para promover sua causa. De acordo com o historiador Jonathan Healey, eles “gostavam de relembrar uma era antiga de hospitalidade calorosa e diversão obscena, em contraste com o que eles viam como a austeridade cultural do regime puritano”.
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Oliver Cromwell chega ao poder
Em 1653, Oliver Cromwell tornou-se Lorde Protetor da Comunidade da Inglaterra, Escócia e Irlanda. Cromwell havia sido um membro do Parlamento relativamente sem destaque durante o governo de Carlos I, mas as guerras civis o transformaram em um comandante militar e líder da causa parlamentarista.
A história sempre culpou Cromwell, o rosto do Protetorado, pela proibição do Natal, mas as proibições do Parlamento são anteriores à sua ascensão como Lord Protetor. De fato, o máximo que se pode dizer sobre o papel de Cromwell na proibição é que ele optou por não reverter o que o Parlamento já havia feito.
A morte de Cromwell, cinco anos depois, pôs fim ao experimento republicano da Inglaterra. O Parlamento logo convidou o filho de Carlos I para governar como rei em 1660, restaurando assim a monarquia britânica.
O renascimento do Natal
O rei Carlos II restaurou mais do que apenas a monarquia. Ele reabriu teatros, reavivou a cultura da corte e ressuscitou o Natal em 1660 com tradições familiares, como enfeitar as igrejas com azevinho. Jogos, banquetes, danças e jogos de azar na época do Natal também voltaram, especialmente na corte real.
O famoso cronista da vida no século 17, Samuel Pepys, até marcou o retorno do Natal na Inglaterra em seu famoso diário. Ele comemorou o feriado em 1660 indo à igreja duas vezes naquele dia, uma pela manhã e outra à noite, após uma refeição de carneiro e frango. Embora Pepys tenha achado o sermão da noite “monótono” e lamentado que ele “me fez dormir”, ficou claro que os velhos costumes haviam retornado definitivamente.
A proibição do Parlamento, no final das contas, pouco fez para tirar o espírito natalino do coração dos homens e mulheres ingleses. Mas fez outra coisa: ressaltou o fato de que o Natal há muito tempo está na mira da política.