A foto retrata uma réplica de como seria o crânio do "Homem de Java", o primeiro ...

O “Homem de Java”, o primeiro Homo erectus descoberto, finalmente irá voltar para casa

Escavado com mão de obra colonial e enviado para a Holanda, o famoso fóssil está sendo repatriado para a Indonésia junto com outros 28 mil fósseis.

A foto retrata uma réplica de como seria o crânio do "Homem de Java", o primeiro Homo erectus encontrado, que fica no Museu de História Natural de Stuttgart, na Alemanha.

Foto de Domínio público
Por Dyna Rochmyaningsih
Publicado 3 de nov. de 2025, 16:02 BRT

Em 1866Raden Saleh, um nobre javanês e pintor naturalista, viajou para a parte oriental da ilha de Java, na Indonésia, para ver o chamado “campo de batalha dos gigantes”.

Os agricultores locais encontraram ossos enormes, que, segundo eles, pertenciam ao “rei demônio gigante Arimba”, uma figura da versão javanesa do épico sânscrito Mahabharata. Intrigado, Saleh visitou o “campo de batalha” e identificou os ossos grandes como fósseis pertencentes a animais do passado antigo.

Décadas mais tarde, o relatório sobre os fósseis de Saleh chegou às mãos de Eugène Dubois, um médico e naturalista holandês que estava em busca do “elo perdido” na evolução humana. Ele acreditava que ele devia estar escondido nas ilhas tropicais do sudeste asiático, lar de várias espécies de primatas, como orangotangos e gibões (a maior parte dessa região fazia era colônia holandesa e se tornou um país livre, a Indonésia, somente em 1945). 

Ele havia procurado em Sumatra, sem sucesso. Mas, convencido pela abundância de fósseis encontrados por Saleh, Dubois voltou sua atenção para o leste de Java.

Lá, em Trinil, em 1891, o naturalista holandês encontrou o que acreditava estar procurando. Dubois — usando trabalhadores forçados javaneses escavou uma calota cranianaum molar e um fêmur pertencentes a um hominídeo antigo, pré-histórico.

Retrato de Eugène Dubois, médico e naturalista holandês cuja missão de vida era encontrar o “elo ...

Retrato de Eugène Dubois, médico e naturalista holandês cuja missão de vida era encontrar o “elo perdido” na evolução humana.

Foto de Naturalis Biodiversity Center

Em comparação com os neandertais, que haviam sido formalmente nomeados uma nova espécie em 1864, esse novo espécime tinha um volume cerebral menor, mais próximo do de um macaco, e seu fêmur indicava que ele podia andar ereto

Em um artigo de 1894Dubois apresentou os fósseis como “Pithecanthropus erectus” ou “o homem-macaco que anda ereto”. Mais tarde, na década de 1950, os cientistas classificaram-no comoprimeira evidência do Homo erectus.

descoberta do chamado “Homem de Java” chocou a comunidade científica, pois foi vista como uma evidência que reforçava ainda mais a teoria da evolução de Charles Darwin.

“Foi a primeira prova de que a origem humana não é uma exceção na evolução darwiniana”, afirma Soefwan Noerwidi, paleoantropólogo da Agência Nacional de Pesquisa e Inovação da Indonésia (Brin). “O campo da evolução humana nasceu aqui em Java.”

No entanto, apesar das contribuições da Indonésia para a nossa compreensão das origens humanas, o seu fóssil mais valioso não se encontra no seu país natal há 130 anos. Isso porque Dubois levou o crânio para a Holanda em 1895. Várias tentativas diplomáticas falharam em trazê-lo de volta para Java.

Até agora, após mais de um século residindo no Naturalis Biodiversity Center, em Leiden, na Holanda,  o “Homem de Java” está pronto para voltar para casa, na Indonésia. 

famoso e importante fóssil — juntamente com outros 28 mil fósseis que Dubois coletou “nos campos de batalha” — será devolvido aos museus indonésios, anunciou o Naturalis em 26 de setembro de 2025, após os ministros da Cultura de ambos os países assinarem o tão esperado acordo.

retorno do “Homem de Java” à Indonésia faz parte da pressão contínua sobre museus norte-americanos e europeus para repatriar objetos de história natural eticamente problemáticos de volta às suas origens. 

Em 2016, os Estados Unidos repatriaram fósseis de dinossauros saqueados para a Mongólia e a Alemanha devolveu os ossos de dinossauros de 110 milhões de anos ao Brasil

Para os cientistas indonésios, essas restituições significam mais do que corrigir a injustiça colonial do passado. A proximidade com seus objetos de pesquisa também é uma libertação, uma oportunidade maior de participar da pesquisa paleontológica global, diz Noerwidi.

“A ausência das coleções de Dubois foi uma grande perda para a ciência indonésia”, afirma Anton Wibisono, subdiretor de Defesa Cultural do Ministério da Cultura da Indonésia. Wibisono, que era estudante de arqueologia, diz estar animado por finalmente poder ver pessoalmente os famosos fósseis de sua terra natal, sobre os quais aprendeu nos livros didáticos e nas aulas. “Fiquei profundamente emocionado ao ouvir a notícia.”

(Você pode se interessar também: Existiu um ser humano do tamanho de um hobbit? Conheça o Homo floresiensis)

Esforços para devolver o “Homem de Java” à Indonésia


repatriação do “Homem de Java” já deveria ter ocorrido há muito tempo, afirma Caroline Drieenhuizen, historiadora da Open Universiteit em Heerlen, na Holanda. A Holanda já aprovou vários pedidos de repatriação de objetos culturais e restos mortais, mas o acordo sobre o “Homem de Java” é a primeira restituição de coleções de história natural no país, diz ela.

Isso é importante porque “os museus de história natural há muito escapavam do escrutínio descolonial, embora suas coleções também tenham suas raízes nas práticas e no pensamento coloniais”, escreveu Drieenhuizen em um artigo de 2021. 

Em seu relatório explicando a decisão, o Comitê de Coleções Coloniais da Holanda destacou que os fósseis de Dubois foram escavados em uma época de “violência, exploração e desequilíbrio de poder”.

Os esforços diplomáticos para trazer o fóssil de volta para casa começaram na década de 1950, quando a Indonésia começou a construir uma narrativa nacional que une pessoas de centenas de idiomas diferentes e milhares de ilhas.

“Os fósseis do ‘Homem de Java’ serviram então como prova científica da grandeza e importância da Indonésia para o mundo”, afirma Fenneke Sysling, historiadora da ciência na Universidade de Leiden, na Holanda.

Mas a proposta da década de 1950 e outra na década de 1970 não tiveram sucesso.

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    A Coleção Dubois compreende cerca de 40 mil objetos coletados por Eugène Dubois na Indonésia entre 1887 e 1900, incluindo o “Homem de Java”.

    Foto de Taco van der Eb, Naturalis Biodiversity Center

    Foram necessárias cinco décadas para que o pedido das coleções Dubois voltasse à tona. Drieenhuizen afirma que isso pode ser parte da crescente conscientização entre os acadêmicos holandeses em reconhecer a injustiça de seu passado colonial.

    A partir de 2016, o pedido de restituição de objetos problemáticos em museus holandeses tornou-se um debate público. Até agora, o país aprovou uma série de repatriações de objetos culturais e restos mortais para vários países, como 119 bronzes do Benim para a Nigéria em 2025, 233 artefatos pré-hispânicos para o México em 2022 e 1.500 artefatos culturais para a Indonésia em 2022.

    Em meio a esses movimentos de restituição, o governo indonésio apresentou outra proposta de repatriação do seu mais importante fóssil à Holanda em 2022. A proposta foi inicialmente rejeitada pelo Naturalis, que argumentou que fósseis enterrados são diferentes de tesouros artísticos, mas avaliações jurídicas finalmente convenceram o governo holandês a abrir mão do “Homem de Java”.

    “É a primeira vez que questões jurídicas dominam um argumento de repatriação”, comenta Drieenhuizen, destacando a relutância anterior dos holandeses em devolver o fóssil.

    “As peças faziam parte da nossa identidade e eram o destaque da coleção do nosso museu”, afirma Bart Braun, porta-voz do Naturalis Biodiversity Center. “Mas percebemos que este é um momento muito importante para os indonésios, pois corrige uma grande injustiça do passado.”

    Ele afirma que o museu está atualmente registrando e digitalizando os 28 mil fósseis. O processo pode levar “muitos meses” antes que a repatriação efetiva ocorra.

    O crânio do “Homem de Java” foi descoberto por Eugène Dubois em 1891, em Trinil, Java ...

    O crânio do “Homem de Java” foi descoberto por Eugène Dubois em 1891, em Trinil, Java Oriental. Ele desempenhou um papel crucial na nossa compreensão da evolução humana e será repatriado para a Indonésia após mais de um século na Holanda.

    Foto de Naturalis Biodiversity Center

    Uma nova era na ciência da Indonésia


    Do lado indonésio, Wibisono, funcionário do Ministério da Cultura da Indonésia, afirma que sua equipe acompanhará os aspectos técnicos dos esforços de repatriação no final de 2025.

    “Estamos mais do que prontos para aceitar esses espécimes”, afirma Wibisono.

    Um local possível para abrigar os fósseis, segundo ele, é o Museu do Homem Primitivo de Sangiran, que fica em Java Central. Ele já abriga milhares de espécimes de plantas e animais antigos, incluindo peças de fósseis de H. erectus encontrados após a escavação de Dubois em 1891

    Universidade Gadjah Mada, em Yogyakarta, e o escritório de Noerwidi no Brin também armazenam milhares de fósseis, incluindo o lendário H. floresiensis, afirma Rusyad Adi Suriyanto, paleoantropólogo da universidade.

    Dwirahmi Suryandari, pós-doutoranda do Instituto Max Planck de História da Ciência, em Berlim, na Alemanha, afirma que a Indonésia poderia usar o tempo de espera para preparar a forma como os espécimes poderiam ser conectados ao ambiente de pesquisa global.

    Como qualquer outra coleção de museu, o ‘Homem de Java’ não deve ficar apenas na exposição, mas precisamos torná-lo ‘vivo’ por meio de pesquisas ativas”, diz Suryandari. Considerado o holótipo — ou a principal referência — dos fósseis de H. erectus, o “Homem de Java” desempenha um papel crucial na pesquisa paleoantropológica.

    Esse fóssil foi fundamental para a compreensão inicial dos cientistas sobre a evolução humana e foi até mesmo usado como evidência em defesa da teoria da evolução no Julgamento do Macaco de Scopes, nos Estados Unidos, em 1925.

    “O retorno dos fósseis pode mudar o acesso à pesquisa dos fósseis e também devolver esse controle às mãos da Indonésia”, comenta Frido Welker, paleoantropólogo da Universidade de Copenhague, na Dinamarca. que agora colabora com Noerwidi no Brin para analisar “a proteína preservada no material esquelético da coleção Dubois”.

    Agora, com o “Homem de Java” voltando para a Indonésia e com laboratórios avançados em DNA antigo, proteômica e tecnologias de tomografia computadorizada surgindo na Indonésia, Noerwidi diz que está animado.

    Da mesma forma que o pintor javanês Raden Saleh acrescentou significado científico aos ossos gigantes que encontrou nos “campos de batalha”, os cientistas indonésios de hoje terão a oportunidade de acrescentar mais significados aos fósseis encontrados em sua terra natal, como o “Homem de Java”.

    O retorno desses fósseis é tão libertador”, resume Noerwidi.

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