Como os viajantes negros estão recuperando Portugal
Apesar de seu papel no nascimento do comércio transatlântico de pessoas escravizadas, Lisboa está atraindo norte-americanos negros que procuram escapar do racismo em seu país.
Duas mulheres se abraçam depois de jogar flores no rio Tejo, na Praça do Comércio, em Lisboa (Portugal), em homenagem às vítimas do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas.
No bairro das Novas Nações de Lisboa, em Portugal, cada rua tem o nome de algumas das ex-colônias portuguesas: rua de Angola, rua de Moçambique, rua da Guiné, rua de Cabo Verde.
“Ah, Cabo Verde”, digo ao meu guia, Djuzé Neves, ‘sua terra natal’. Embora isso não seja totalmente exato – Neves nasceu e foi criado em Lisboa – seus pais vieram da Ilha de Santiago, a maior do arquipélago de Cabo Verde. Refugiados do clima fugindo da seca, eles encontraram consolo no abraço de Lisboa.
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Durante a era do comércio transatlântico de escravos, os africanos escravizados eram trazidos para Lisboa e frequentemente se reuniam em áreas como o Largo de São Domingos.
Para Neves, esse bairro incorpora mais do que apenas a geografia; é um farol de resiliência voltado para a comunidade. Como membro da diretoria da Batoto Yetu, uma organização que promove a herança africana entre jovens carentes, Neves investe seu tempo no cultivo do orgulho cultural.
“Vim para Lisboa exatamente em busca de bairros como o Novas Nações, um espaço libertador para escapar da onda crescente de estresse racial e político que tenho vivido nos Estados Unidos. Não estou sozinho”.
Nas mídias sociais, inúmeros viajantes negros compartilham histórias de se sentirem marginalizados e impotentes diante do racismo sistêmico e da brutalidade policial, o que levou a um aumento nas viagens ao exterior em busca de significado histórico, diversidade cultural e uma atmosfera descontraída.
A Avenida da Liberdade, uma importante via no centro de Lisboa, é pavimentada com calçada portuguesa, que é composta por pequenas pedras planas pretas e brancas dispostas em padrões intrincados que lembram mosaicos.
Não é nova essa prática de afro-americanos viajarem para terras estrangeiras para se livrarem dos desafios e das frustrações de serem negros nos Estados Unidos. Nas décadas de 1920 e 1930, a União Soviética tornou-se um lugar atraente para visitar e explorar porque prometia uma sociedade sem raça e sem classe.
Em Lisboa e em outras cidades, como Paris, Dubai e Amsterdã, os viajantes encontram memoriais e passeios que reconhecem o trauma do comércio de escravos e programas que exploram o patrimônio cultural.
Onde o tráfico de pessoas escravizadas começou
Conheci Madisyn Brown, uma ensaísta de vídeo negra de 22 anos, no voo de Nova York para Lisboa. Ela me contou que sua tataravó era de Portugal. “Mas ninguém da minha família esteve em Portugal, apesar dessa ligação”, diz ela.
No último dia de sua viagem, eu me reencontro com Brown para um drinque na Avenida da Liberdade, uma rua arborizada e ensolarada, com calçadas largas com mosaicos de pedra calcária preta, branca e, às vezes, cinza, chamada de calçada portuguesa. A Avenida da Liberdade é a versão de Lisboa da Champs-Élysées de Paris, da Regent's Street de Londres e da Rodeo Drive de Beverly Hills.
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Brown diz que seu tempo em Lisboa foi mágico. “Eu me senti como uma pessoa normal andando pelo mundo”, afirmou ela. “Nunca senti que não pertencia ao lugar. Vou sentir falta da energia positiva daqui. Os Estados Unidos podem ser um lugar muito difícil de se viver.”
A ironia não me passa despercebida – buscar consolo em uma cidade com laços com a própria instituição da escravidão que moldou nossa história. Aprendemos a associar muitas nações europeias ao colonialismo, mas os norte-americanos não estão tão familiarizados com a cultura e a história lusófonas.
Muitos de nós não sabiam que Portugal não era apenas um participante do colonialismo; ele foi pioneiro no comércio de escravidão. Em 1444, a pequena nação começou a transportar africanos subsaarianos para a Europa. Em 1526, Portugal transportou seu primeiro carregamento de pessoas escravizadas para o Brasil, dando início ao comércio transatlântico de escravos.
Korama Danquah emerge do túnel subterrâneo do Palácio da Quinta da Regaleira, em Sintra, um município próximo a Lisboa.
No entanto, talvez nosso moderno “retorno” a Portugal signifique um passo crucial na cura, uma recuperação da alegria e da liberdade coletivas.
Toby Thompkins, um recente ex-patriota de Nova York, Estados Unidos, vê Lisboa como um lugar de reconciliação. “Acho que é isso que muitos negros norte-americanos estão buscando”, diz ele, acrescentando que há uma abertura para o diálogo e um senso de possibilidades infinitas, que lembra os Estados Unidos da década de 1970 – uma época de reconhecimento e enfrentamento do racismo.
Como conhecer e aproveitar Lisboa
Para abordar seu papel no comércio de escravos, o governo de Lisboa, em associação com a Batoto Yetu, ergueu mais de 20 marcos históricos de ruas para homenagear as contribuições dos africanos e seus descendentes em 2024.
Os viajantes podem encontrar as placas perto do Terreiro do Paço, à beira do rio Tejo, onde os escravizados desembarcavam dos navios que os traziam da África, ou em locais como a Praça do Rossio, que, durante séculos, foi um ponto de encontro tradicional para os negros em Lisboa. É também o local da Igreja de São Domingos, a igreja para onde os africanos escravizados eram levados para o batismo obrigatório.
No bairro Largo São Domingos, que tem uma população africana considerável, foi inaugurado um busto de pedra de Paulino José da Conceição, um africano que foi escravizado e emigrou do Brasil para Portugal em 1832. Da Conceiçao, também conhecido como Pai Paulino, foi um defensor da justiça social e trabalhou para melhorar as condições de trabalho e de vida dos africanos em Lisboa. Também está em andamento um memorial às vítimas da escravidão, o primeiro do gênero na cidade.
Na cidade costeira de Lagos, na região do Algarve, no sul de Portugal, a cerca de três horas de trem de Lisboa, os visitantes podem explorar um pequeno museu dedicado à história da escravidão na cidade. O museu, Mercado de Escravos, está situado no local onde o primeiro grupo de africanos escravizados foi vendido.
Nana-Ama Danquah é uma escritora, editora, jornalista e oradora pública ganense-americana.