Por que a saúde mental é tão importante nos esportes de elite
A jogadora de rugby Patricia García Rodríguez chegou à seleção espanhola vinda da equipe de Geografia e História da Universidade Complutense de Madri. Seu trabalho árduo a levou para as Olimpíadas de 2024 e para algumas das melhores equipes internacionais.
"Eu nunca imaginaria que ficaria mentalmente doente por causa de um esporte que eu amava tanto. O 'eu preciso falar' ou 'eu preciso ficar quieta' passa mil vezes pela minha cabeça. Foi assim que a jogadora de rugby neozelandesa Te Kura Ngata-Aerengamate começou seu testemunho em sua rede social, em 2022. "Nos últimos 8 anos em que estive no Black Ferns [time feminino de rúgbi da Nova Zelândia], lutei mentalmente para finalmente desistir de tudo na competição mais recente."
A famosa ginasta norte-americana Simone Biles chegou à Olimpíada Tóquio 2020 – que ocorreu em 2021 por conta da pandemia de Covid-19 – como uma das maiores estrelas dos Jogos Olímpicos. Uma das atletas que quase certamente subiria ao topo do pódio – ao menos era o que o público esperava e ela sentia essa cobrança.
Mas ela não chegou às manchetes por suas medalhas, mas acabou se tornando um verdadeiro ícone dentro e fora das pistas quando abandonou a competição para a qual vinha se preparando há anos para priorizar sua saúde mental.
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Recentemente, a tenista espanhola Paula Badosa, número 40 do ranking mundial, também deu visibilidade ao grande peso da saúde mental no esporte de elite ao falar sobre a depressão que sofreu. "Para mim, naquela época, as expectativas eram muito maiores do que o nível em que eu estava naquele momento. A pressão levou a melhor sobre mim, a ansiedade levou a melhor sobre mim", explicou ela em uma entrevista no La Cadena Ser.
Assim como Ngata-Aerengamate, Biles e Badosa, atletas como o jogador de futebol espanhol Andrés Iniesta, que marcou o gol que deu à Espanha sua única Copa do Mundo, ou o nadador norte-americano Michael Phelps, o atleta com o maior número de medalhas olímpicas da história, também falaram publicamente sobre a fragilidade que as exigências do esporte de elite tiveram sobre sua saúde mental.
Dentro e fora das competições, a atividade esportiva é um fator muito importante em nossa sociedade atual. Ela faz parte do nosso estilo de vida e está imersa, de uma forma ou de outra, em nosso cotidiano. "O esporte é, sem dúvida, um dos melhores aliados da saúde mental", afirma a psicóloga esportiva María Cabrera Bolufer.
"A prática de exercícios físicos, seja como parte das atividades da vida diária ou como uma atividade regular, não só tem múltiplos benefícios físicos, mas também mentais, com a ativação de neurotransmissores como a serotonina, endorfinas, oxitocina e dopamina, que produzem prazer, relaxamento e equilíbrio no cérebro. Tudo isso promove um aumento da autoestima, da autoconfiança e da estabilidade emocional.
No entanto, levados ao nível do esporte de elite, esses aspectos positivos para nossa saúde podem assumir um tom muito diferente e se tornar, dependendo de muitos fatores, o maior inimigo da saúde mental.
O lado sombrio do esporte
"O esporte de elite é muito exigente mentalmente", afirma Cabrera. "Os atletas são submetidos a uma demanda contínua que os obriga, em parte, a enfrentar adversidades e a se adaptar continuamente aos novos cenários que o alto desempenho apresenta".
A jogadora de rúgbi espanhola Patricia García Rodríguez chegou à seleção espanhola vinda da equipe de Geografia e História da Universidade Complutense de Madri, e seu trabalho árduo catapultou sua carreira para as Olimpíadas e para o reconhecimento internacional no mundo do rúgbi. Agora ela está desfrutando de seu segundo ano de contrato profissional com o Exeter Chiefs da Inglaterra.
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"Sofri [as altas demandas] em certos momentos, quando passamos muito tempo em projetos que exigiam um alto nível de concentração, com competições de longo prazo, convivendo com colegas que não são totalmente profissionais ou que não têm todo esse tipo de conhecimento sobre gestão de pessoas e gestão de equipes", diz García, falando sobre sua experiência das dificuldades de manter um bom equilíbrio mental em certos momentos no esporte de alto desempenho.
"Nós internalizamos que é preciso trabalhar muito e sofrer muito, e é importante diferenciar perseverança, trabalho, resiliência e superação de outros tipos de situações em que a saúde mental pode estar em risco".
Depressão, ansiedade e transtornos alimentares
De acordo com a Universidade de Toronto, no Canadá, os atletas de elite têm maior probabilidade de apresentar distúrbios de saúde mental: lidar com a quantidade de estresse e pressão envolvidos no esporte de elite predispõe o atleta a sofrer um impacto em seu bem-estar emocional.
De acordo com o estudo conduzido por Zoe Poucher na Universidade de Toronto em julho de 2021, depressão, ansiedade e distúrbio alimentar são os problemas mais comuns em atletas, sendo a depressão o mais significativo. "É muito comum ver sintomas de depressão em atletas”, comenta.
Há muitos atletas que compartilharam nas redes e na imprensa que sofreram episódios de depressão durante sua carreira esportiva, como Andrés Iniesta e Michel Phelps", diz Cabrera. "Com situações como a depressão, é completamente inviável não dar a ela a importância e o espaço que a saúde mental deve ter", diz García.
"Acho que a saúde mental evoluiu de onde eu comecei para onde estamos hoje, porque a conscientização e o conhecimento sobre sua importância aumentaram muito", diz a atleta García Rodríguez.
Entre as causas mais comuns, de acordo com o especialista, está o alto nível de demanda ou estresse que o atleta pode experimentar, o que, sem um bom gerenciamento ou habilidades de enfrentamento, pode levar à síndrome de Burnout ("esgotamento"). Outra causa que pode levar à depressão é o mau gerenciamento das expectativas, se elas forem muito altas em relação ao nível ou à situação em que o atleta se encontra.
Além disso, "estar longe de nossos parentes, sentir-se solitário ou incompreendido devido a barreiras linguísticas ou culturais pode, às vezes, ser um obstáculo para a formação de novos vínculos com outras pessoas", diz ele.
Depois da depressão e da ansiedade, a alta porcentagem de distúrbios alimentares reflete um lado particularmente sombrio do alto desempenho, especialmente quando esses distúrbios são incentivados pelos próprios treinadores desde a mais tenra idade. "No esporte, há muito mais do que 'acredite em si mesmo e você alcançará seus objetivos'", afirma a patinadora artística no gelo Celia Robledo.
"Há muito abuso e maus-tratos psicológicos. O que eu vivenciei mais de perto foram os transtornos alimentares, que, no final das contas, são uma distorção cognitiva que eles criam em você. [A saúde mental] é algo que não é levado em conta, portanto, quando precisei de ajuda, tive de buscá-la por conta própria.”
O peso das referências
De acordo com Cabrera, o fato de um atleta apresentar ou não problemas depende de muitos fatores, tanto das características individuais do atleta – sua personalidade, mecanismos de defesa, gerenciamento de pressão e emoções – quanto dos recursos internos disponíveis. No entanto, a responsabilidade dos técnicos desempenha um papel muito importante nessa equação; ter um mentor que proporcione essa saúde mental é a base de qualquer treinamento positivo.
"Agora que sou técnica, vejo isso ao meu redor, e há muito pouca conversa sobre isso no treinamento", explica Robledo. "Se o seu treinador, cuja opinião naquele momento é mais importante para você do que a sua própria, lhe diz todos os dias que você é gordo, é impossível que você se desenvolva mentalmente de forma saudável."
Por sua vez, García conta que, anos atrás, quando começou a trabalhar com um de seus primeiros treinadores, houve alguns que pediram que ela parasse de fazer isso durante a competição, pois achavam que não seria positivo para seu desempenho. "Pelo contrário, estamos trabalhando em habilidades mentais, concentração, gerenciamento de estresse, situações de compreensão, empatia, habilidades sociais, mentais e emocionais que nos permitirão ter um melhor desempenho nas competições e, é claro, sermos melhores", explica.
Jogos Olímpicos: um sonho realizado?
De acordo com o estudo de Poucher, mais de 41% dos atletas da equipe nacional canadense, aqueles que treinaram para Tóquio 2020, atendem aos critérios de corte propostos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais para depressão, ansiedade e/ou transtorno alimentar. Um número que certamente contrasta com os cerca de 10% que relatam um transtorno mental em um determinado período de 12 meses, de acordo com o estudo canadense.
Especificamente, 31,7% dos atletas relataram sintomas de depressão, 18,8% relataram ansiedade geral moderada (12,9%) a grave (5,9%) e 8,6% relataram escores que indicam alto risco de transtorno alimentar.
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"Antes de sermos atletas, somos pessoas e, portanto, se estivermos em uma situação difícil mentalmente, isso se refletirá em nosso estado de espírito e saúde no dia a dia, nos treinos e nas competições", afirma García Rodríguez.
"Encontramos uma correlação significativa entre o estresse e os três diferentes transtornos mentais que medimos, por isso acho que essa é uma peça importante do quebra-cabeça", diz Poucher. O estudo também revelou que o fato de ter competido em Jogos Olímpicos ou Paraolímpicos anteriores foi negativamente associado a sintomas de transtorno alimentar, e o fato de ter sido selecionado para participar dos Jogos de Tóquio foi associado a sintomas de depressão.
"Ouvimos falar muito sobre depressão pós-olímpica, mas não vi nenhuma pesquisa sobre saúde mental antes dos Jogos Olímpicos", diz Poucher. "Acho que o pressuposto é que as pessoas estão felizes por terem entrado na equipe."
A ginasta brasileira Rebeca Andrade, atualmente a atleta com mais medalhas olímpicas do país, que nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 recebeu quatro medalhas, inclusive uma de ouro no solo, afirmou recentemente a importância de estar bem psicologicamente.
“A minha preparação para as Olimpíadas foi na conversa, eu converso muito com a minha psicóloga. Eu tento cuidar ao máximo da minha cabeça e do meu corpo para criar um equilíbrio e fazer minhas apresentações sem pressão, bem tranquila. Sem me sentir pressionada para fazer o meu trabalho”, revelou Rebeca em uma entrevista para a tv brasileira.
O estigma da fraqueza
"Na cultura esportiva, a saúde mental há muito tempo é vista como um sinal de fraqueza e não de força", explica Cabrera. "E os atletas temem que isso os exponha à vulnerabilidade e reduza suas chances contra clubes ou equipes profissionais ou uma reação social negativa.
Quando sofrem de sintomas como desânimo, tristeza, ansiedade ou apatia, é muito difícil para o atleta atingir um desempenho ideal, de acordo com o especialista. Isso os leva a enfrentar as situações com medo e receio, o que faz com que se sintam vulneráveis e incapazes.
"Precisamos estar em um estado de saúde mental e, quando esse não for o caso, não tentar levar a máquina, o corpo, a alma e a mente a limites que não são saudáveis, porque isso tem repercussões muito duras e negativas para a pessoa", comenta García.
Na Inglaterra, onde ela joga atualmente pelo Exeter Chiefs, "a cultura inglesa em relação à saúde mental é muito maior do que na Espanha, por exemplo. Meninas de 18, 19 ou 20 anos falam sobre cuidar da saúde mental e estão cientes de sua importância. As situações existem, mas a conscientização social está muito mais avançada nesse aspecto", diz ele.
Visibilidade, conscientização e treinamento
Em um nível cultural, esses estigmas estão arraigados na estrutura de nossa sociedade. Esse não é um problema apenas do mundo do esporte. Para transformar essas situações, "devemos começar tornando esse problema visível e aumentando a conscientização sobre ele", diz Cabrera.
Ele argumenta que as federações e outras organizações devem ter um plano de prevenção e detecção de sintomas, liderado por profissionais credenciados e psicólogos esportivos, que trabalham em conjunto com uma equipe multidisciplinar e fazem parte da estrutura organizacional.
"Precisamos de treinamento, não ouvimos falar sobre isso no esporte de alto nível. Precisamos falar sobre isso para eliminar tabus", acrescenta García, que reclama que muitas vezes eles fazem treinamentos sobre doping, preparação física ou lesões, mas não têm informações sobre saúde mental.
Trabalhar para mudar os estigmas sociais e dar a ela a importância que merece "é uma tarefa pendente que precisamos melhorar como sociedade. Mas a notícia positiva é que estamos começando a nos dar conta disso, a torná-lo visível, a internalizá-lo e, pouco a pouco, espero mudá-lo", diz García.
"Embora a saúde mental esteja afetando uma grande proporção de atletas de elite, ela ainda não recebe a atenção que merece", conclui Poucher em seu estudo. "Se pudermos mostrar que é um grande problema, espero que isso ajude a mudar a conversa sobre saúde mental, aumentar a conscientização sobre o problema e ajudar a mudar as políticas.