Como a fumaça das queimadas afeta o corpo humano? Os danos podem ser permanentemente, explicam os cientistas
Em julho de 2023, moradores locais se reúnem para observar os esforços de combate ao fogo em meio à forte fumaça do incêndio florestal Eagle Bluff, depois que ele cruzou a fronteira entre o Canadá e os EUA e provocou a evacuação de Osoyoos, no Canadá. As doenças respiratórias foram uma das principais causas de hospitalizações pediátricas e visitas ao pronto-socorro, mas a fumaça dos incêndios florestais também pode causar danos permanentes, tanto em crianças quanto em adultos.
O Brasil vem passando por uma fase de muitos incêndios florestais e secas em várias regiões do país durante este inverno de 2024, o que está comprometendo muito a qualidade do ar – além de outras diversas consequências ambientais sérias. Segundo dados da empresa suíça de tecnologia IQAir, que monitora as condições da atmosfera no mundo, apontam que oito estados brasileiros e o Distrito Federal estão com o ar insalubre por conta dos incêndios florestais no final de agosto de 2024.
Os cientistas sabem que a fumaça de incêndios florestais pode exacerbar doenças como asma e Dpoc (síndrome que engloba bronquite crônica e enfisema pulmonar), aumentar o risco de ataque cardíaco e derrame, prejudicar a concentração, reduzir a capacidade do corpo de combater infecções e causar inflamação nos pulmões, rins, fígado e provavelmente em outros órgãos.
Mas e quanto aos efeitos mais duradouros, até mesmo permanentes? A exposição a períodos curtos de fumaça intensa de incêndios florestais pode deixar cicatrizes permanentes no corpo?
Embora seja uma área relativamente nova de investigação científica, a resposta parece ser sim, embora o dano em potencial dependa da idade, da distância do incêndio, da quantidade de exposição à fumaça e até mesmo das características do incêndio. “O problema com os incêndios florestais é que eles estão espalhados por todo o mapa em termos do que está sendo queimado”, comenta Lisa Miller, imunologista da Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos, que está estudando os efeitos de longo prazo da exposição à fumaça de incêndios florestais em macacos rhesus. “É uma bagunça química”.
“Embora o impacto da poluição do ar em geral sobre a saúde humana seja conhecido há algum tempo, só recentemente começamos a entender o impacto da fumaça de incêndios florestais sobre a saúde humana”, afirma Anthony White, neurocientista do QIMR Berghofer Medical Research Institute em Herston, Austrália. “Essa questão é ampliada pelo fato de que pode ser difícil distinguir entre os efeitos da poluição do ar ambiente e o impacto na saúde especificamente da fumaça de incêndios florestais, especialmente quando essa poluição ocorre esporadicamente e sem aviso prévio.”
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Muito pior do que apenas a poluição do ar
O que os cientistas estão aprendendo sobre os efeitos persistentes da fumaça de incêndios florestais é, em grande parte, proveniente de estudos com animais, pesquisas de curto prazo sobre a fumaça de incêndios florestais e pesquisas sobre a poluição do ar e incêndios em cozinhas a lenha. A maior parte dessas pesquisas mede a exposição a PM2.5, partículas de 2,5 micrômetros – cerca de 30 vezes menores que o diâmetro de um fio de cabelo humano.
“Embora ainda não tenhamos muitas evidências de exposições de longo prazo à fumaça de incêndios florestais, é seguro extrapolar muito do que sabemos da poluição do ar urbano [efeitos] sobre a saúde”, diz Ana Rappold, estatística ambiental da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Mas a pesquisa sobre poluição do ar conta apenas parte da história, pois a fumaça de incêndios florestais difere não apenas da poluição do ar, mas também de um incêndio florestal para outro.
Sua composição muda dependendo do que está sendo queimado, tanto a biomassa – árvores, arbustos, grama, animais – quanto qualquer outro combustível, como casas e empresas, explica Stephanie Cleland, epidemiologista de saúde ambiental da EPA.
Além do PM2.5, a fumaça dos incêndios florestais contém outros produtos químicos tóxicos e compostos orgânicos voláteis que variam de acordo com o combustível, a temperatura da queima e até mesmo a idade da fumaça. “É provável que ela cause diferentes tipos de efeitos à saúde ou uma gravidade diferente; e você está exposto a várias coisas ao mesmo tempo, o que nem sempre acontece com a poluição típica do ar ambiente”, afirma Cleland. Além disso, com a maior densidade das concentrações de PM2,5 e os vários gases dos incêndios florestais, “você pode ter um efeito sinérgico”, acrescenta Rappold.
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Danos cerebrais: uma das possíveis consequências
Em geral, o cérebro tem maior proteção do que outros órgãos devido à barreira hematoencefálica, uma rede estreita de vasos sanguíneos que regula estritamente o que pode passar, como um segurança que decide quem pode entrar em uma boate. Mas a barreira hematoencefálica não é totalmente impermeável.
Adam Schuller, toxicologista ambiental da Universidade Estadual do Colorado, nos Estados Unidos, descreveu três maneiras pelas quais os poluentes podem chegar ao cérebro: as partículas viajam no sangue oxigenado dos pulmões diretamente para o cérebro; as partículas entram diretamente no cérebro pelo trato olfativo; ou fatores inflamatórios desencadeados por uma resposta inflamatória nos pulmões invadem o cérebro.
Uma vez lá, “o material particulado pode danificar os neurônios tanto diretamente, por meio do acúmulo de moléculas nocivas e instáveis chamadas radicais livres, quanto indiretamente”, diz White, acionando as células imunológicas para liberar moléculas que prejudicam ou matam os neurônios e interrompem as conexões que permitem que as células cerebrais se comuniquem e armazenem memórias, mesmo que os neurônios não morram.
Cleland e Rappold identificaram os efeitos cognitivos de curto prazo dessa exposição, comparando as pontuações de mais de 10 mil adultos americanos no Luminosity – um aplicativo móvel de treinamento cerebral – quando alguns estavam em áreas afetadas pela fumaça de incêndios florestais. Eles descobriram que as pessoas expostas à fumaça de densidade média ou pesada – com base em dados de satélite da Noaa – tiveram um desempenho mais fraco, com pontuações de atenção ligeiramente mais baixas, do que aquelas expostas à fumaça de densidade leve ou sem fumaça.
A combinação dessas descobertas com o que se sabe sobre outros tipos de exposição à fumaça sugere a probabilidade de efeitos cognitivos de longo prazo. Há fortes evidências de que a poluição do ar ambiente e a fumaça de lenha de fogueiras de cozinha aumentam o risco da doença de Alzheimer e de outras demências, além de evidências de que a poluição do ar aumenta o risco de depressão.
“Podemos observar outros efeitos da fumaça de incêndios florestais em outras alterações neurológicas, mas isso requer mais estudos e mais pessoas para gerar resultados sólidos”, comenta White. “Também estamos tentando determinar o impacto que a fumaça de incêndios florestais tem sobre a demência em comparação com a exposição à poluição do ar ambiente.”
Pesquisas emergentes também sugerem que a exposição à poluição do ar durante a gravidez pode aumentar o risco de transtornos do espectro do autismo e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) no feto em desenvolvimento. A maioria das pesquisas sobre a exposição à fumaça de incêndios florestais e a gravidez concentrou-se no nascimento prematuro e no peso ao nascer, mas a fumaça de incêndios florestais contém o mesmo PM2.5 que a poluição do ar, portanto, é possível que haja um risco teórico de impactos de longo prazo no feto.
Efeitos no sistema imunológico e nos pulmões
As poucas pesquisas disponíveis sobre os efeitos persistentes da fumaça de incêndios florestais na saúde sugerem que os pulmões e o sistema imunológico podem ser especialmente afetados. Quando os incêndios florestais envolveram a região de Seeley Lake, em Montana, em 2017, Chris Migliaccio, toxicologista da Universidade de Montana, nos Estados Unidos, começou a estudar os efeitos da fumaça dos incêndios florestais nos residentes próximos.
Inicialmente, ele não encontrou nenhum efeito significativo em suas funções pulmonares dois meses após a exposição. Porém, um e dois anos depois, os residentes tiveram reduções significativas na função pulmonar – a capacidade de esvaziar os pulmões rapidamente. A pandemia impediu um acompanhamento de longo prazo.
Um dos únicos estudos de longo prazo sobre os efeitos da fumaça de incêndios florestais foi realizado com macacos rhesus em um laboratório apoiado pelo NIH em Davis, na Califórnia. Embora os cientistas não tivessem planejado estudar a fumaça de incêndios florestais nos animais, incêndios florestais próximos em junho e julho de 2008 enviaram nuvens de fumaça para os recintos externos dos macacos, expondo-os a 10 dias de níveis de PM2,5 acima do padrão diário da EPA.
Lisa Miller, a imunologista, tem estudado os efeitos da exposição em macacos nascidos naquela primavera, que tinham apenas 4 a 6 meses de idade – o equivalente humano a cerca de 2 a 3 anos – quando a fumaça passou.
Quando Miller cultivou o sangue de macacos no laboratório e o expôs a bactérias, as células imunológicas apresentaram uma resposta defeituosa, sugerindo que não seriam capazes de montar uma defesa robusta contra uma infecção bacteriana. Mas isso foi há 15 anos, e Miller ainda está observando uma função imunológica anormal nesses macacos atualmente.
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Ela também descobriu mudanças nos ritmos circadianos dos macacos – o relógio interno do corpo que governa os ciclos de sono-vigília – e mudanças “bastante impressionantes” na estrutura pulmonar dos macacos vistas em tomografias computadorizadas. Os macacos produzem níveis mais altos de cortisol em resposta ao estresse e dormem menos, e seus pulmões são mais rígidos e têm menor volume. “Eles têm o que parece ser evidência de doença pulmonar intersticial”, um conjunto de condições que causam cicatrizes nos pulmões, diz ela.
Embora os macacos não sejam um substituto perfeito para os seres humanos, eles são o mais próximo possível, e a evidência de Miller é consistente com outro estudo que analisou as taxas de gripe e a exposição à fumaça de incêndios florestais durante oito anos em Montana.
Os pesquisadores descobriram que a exposição ao PM2.5 durante a temporada de incêndios florestais (julho a setembro) estava associada a piores índices de gripe na temporada de gripe subsequente. A poluição atmosférica e, portanto, a fumaça de incêndios florestais, também traz riscos maiores para as pessoas com doenças cardíacas, diz Rappold, mas os cientistas estão apenas começando a examinar os efeitos de longo prazo da exposição à fumaça no coração.
Embora seja a melhor evidência disponível sobre a exposição de longo prazo, a pesquisa de Miller ainda revela apenas os efeitos de um único incêndio. “É importante que o público entenda a diferença entre a fumaça de incêndios florestais e a fumaça de lareiras e o fato de que nem todos os incêndios florestais têm o mesmo efeito”, diz Miller.
Reduzindo os riscos
Um princípio fundamental da toxicologia é que a “dose faz o veneno”, mas a dose – ou a densidade de PM2,5 e outros gases no caso da fumaça de incêndios florestais – é apenas um fator. A duração e a frequência também são importantes, explica Luke Montrose, toxicologista ambiental da Universidade Estadual do Colorado, nos Estados Unidos.
“Pensar em como você pode ajustar essas alavancas em sua própria vida, reduzindo a dose, a duração e a frequência”, pode ajudá-lo a encontrar maneiras de reduzir o risco de efeitos sobre a saúde, diz Montrose. Uma maneira de fazer isso é usar um monitor portátil de qualidade do ar ou verificar os níveis locais de AQI. Da mesma forma que você verifica a previsão do tempo antes de sair para uma caminhada ou outra atividade, “as pessoas devem ter a mentalidade de que devem verificar a qualidade do ar antes de sair para saber se devem sair”, afirma Montrose.
A vantagem dos monitores portáteis, que Rappold e Cleland também recomendaram, é que eles também informam sobre a qualidade do ar interno. As recomendações de saúde pública geralmente aconselham as pessoas a permanecerem em casa durante os dias com qualidade de ar ruim, mas “a fumaça de incêndios florestais é capaz de penetrar e prejudicar a qualidade do ar interno”, diz Schuller.
“Ainda não sabemos como a combinação de fumaça de incêndios florestais e calor extremo afeta a saúde humana”, já que ambos foram tratados separadamente em pesquisas até agora, comenta White. “Ambos são estresses importantes para o corpo, e a combinação pode ter resultados que ainda são desconhecidos.”
Durante os piores dias, uma máscara pode ajudar a reduzir a exposição ao PM2,5, mesmo que não consiga filtrar os gases. Uma análise de pesquisa sugere que as máscaras cirúrgicas reduzem a exposição em 20% e as máscaras N95 em 80%. Vale a pena considerar também o ajuste de sua rotina de exercícios em dias particularmente ruins.
O exercício extenuante força as partículas de poluição a entrarem mais profundamente em seus pulmões e os enche mais do que a respiração mais superficial durante o repouso, diz Montrose. E o aumento do oxigênio que você ingere a cada respiração pode fornecer uma dose maior de poluentes.
As autoridades governamentais não podem impedir a fumaça, mas podem alertar o público sobre os riscos e usar e compartilhar recursos como o Smoke-Ready Toolbox for Wildfires da EPA. “É necessário transmitir ao público a mensagem de que a fumaça dos incêndios florestais pode ter efeitos mais duradouros”, afirma White. “Fornecer avisos claros de saúde pública para a comunidade quando a fumaça provavelmente os afetará é vital para permitir que as pessoas façam planos para evitar a exposição o máximo possível.”
Um ou dois dias de céus apocalípticos alaranjados podem não causar efeitos permanentes – ainda não sabemos – mas, à medida que a frequência e a área geográfica dos incêndios florestais aumentam, os períodos de céus enfumaçados podem durar mais do que alguns dias e ocorrer com mais frequência.
“Infelizmente, não temos uma resposta sobre a quantidade e o tempo que podemos ficar expostos à fumaça de incêndios florestais antes que ela tenha efeitos de longo prazo sobre a saúde”, diz White. “Mas talvez o fato mais importante seja que, quanto mais estudamos a poluição do ar e a fumaça de incêndios florestais, mais aprendemos que quantidades menores ainda podem ter efeitos tóxicos e, portanto, quanto menor a exposição, melhor.”