A gripe aviária pode causar uma pandemia em humanos? Especialistas esclarecem sintomas e perigos reais
O Brasil registrou o primeiro foco de gripe aviária em uma granja comercial no Rio Grande do Sul e há suspeitas em outros estados. Mas a gripe aviária pode contaminar humanos? Vejam o que explicam os especialistas.

Após os Estados Unidos passar por uma grande crise por conta da gripe aviária, chamada cientificamente de H5N1, o Brasil está em alerta desde o dia 16 de maio, quando foi confirmado oficialmente o primeiro foco da influenza aviária de alta patogenicidade no país, em uma granja comercial da cidade de Montenegro, no Rio Grande do Sul.
Desde o anúncio do primeiro caso de gripe aviária em uma granja comercial no país, parceiros comerciais do Brasil como China, União Europeia e Argentina suspenderam as importações de carne de frango brasileira, inicialmente por um prazo de 60 dias.
O Ministério da Agricultura e Pecuária do Brasil esclarece que os ovos para incubação, fornecidos pela granja com o foco da gripe aviária, em Montenegro, já foram rastreados quanto aos seus destinos e estão em Minas Gerais, no Paraná e no próprio Rio Grande do Sul. Eles orientaram ass medidas de saneamento definidas no plano de contingência para influenza aviária e doença de Newcastle, que prevê a destruição desses ovos de maneira a mitigar qualquer risco.
O vírus da gripe aviária surgiu pela primeira vez em fazendas de aves em Hong Kong em 1997, onde matou quase 100% das galinhas, causando hemorragia interna e destruindo vários órgãos de uma forma que lembra assustadoramente o Ebola em humanos. Desde então, sucessivas ondas de infecção, disseminadas por aves selvagens, têm assolado granjas de aves em todo o mundo.
Recentemente, no entanto, o H5N1 deu um passo evolutivo inquietante na direção dos seres humanos. Em 2022, ele devastou uma população de elefantes marinhos na Argentina, matando milhares com uma taxa de mortalidade de 97%. Foi a primeira vez que se sabe que o H5N1 se instalou em uma espécie de mamífero. Até então, as pessoas e outros mamíferos que adoeciam contraíram o vírus por meio do contato com aves. Os elefantes-marinhos estavam transmitindo o vírus uns aos outros – algo preocupante.
Quando os cientistas publicaram as descobertas de suas pesquisas em junho de 2024, o H5N1 já havia infectado outra espécie de mamífero: vacas leiteiras. Desde março de 2024, o vírus se espalhou para mais de 800 rebanhos leiteiros em 16 estados norte-americanos, incluindo mais de 500 na Califórnia.
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A gripe aviária em humanos
Nos Estados Unidos, pelo menos 66 pessoas contraíram o vírus na última crise, a maioria por meio de contato direto com aves ou vacas. Em dezembro, uma criança no condado de Marin que bebeu leite cru (ou seja, não pasteurizado), teve febre e vomitou, e depois testou positivo para H5N1.
Em dezembro de 2024, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) confirmaram o primeiro caso “grave” de gripe aviária em humanos nos Estados Unidos. Esse paciente, que havia sido exposto a aves doentes em um bando no seu quintal e que tinha condições médicas subjacentes, morreu no início de janeiro de 2025 – a primeira fatalidade conhecida nos Estados Unidos.
Toda vez que um ser humano fica doente, o vírus tem outra oportunidade de adquirir a capacidade de se espalhar de pessoa para pessoa. E quando ultrapassa esse marco, ele pode iniciar uma pandemia.
Mas calma, não há evidências de que o H5N1 tenha ultrapassado esse ponto de inflexão sombrio. Talvez ele nunca dê esse salto. Mas “sabendo o que sabemos sobre esses vírus, a tendência não é boa”, diz Matthew Binnicker, microbiologista especializado em doenças respiratórias da Mayo Clinic em Rochester, Minnesota, Estados Unidos, acrescentando que é necessário tomar “medidas sérias”.
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De maneira geral, o risco de um ser humano contrair a gripe aviária é maior somente com contato direto ou indireto com animais infectados ou com ambientes e superfícies contaminados por fezes ou outros fluidos desses animais.
Portanto, depenar, manusear carcaças de aves infectadas e preparar aves para consumo, especialmente em ambientes domésticos, também podem ser fatores de risco, como explica a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em artigo publicado na Agência Brasil.
Os especialistas estão preocupados com as duas principais maneiras pelas quais o vírus pode começar a se espalhar mais facilmente entre as pessoas. E eles enfatizam: não é cedo demais, nem irracional, para se preparar para o pior.

Os cientistas estão preocupados com o fato de os porcos poderem ser um terreno fértil para uma versão da gripe aviária que pode se espalhar mais facilmente entre os seres humanos.
1. Os porcos podem ser a chave para desbloquear uma pandemia de gripe aviária
A presença do H5N1 em centenas de rebanhos de vacas, como ocorreu nos Estados Unidos, não é uma boa notícia, mas elas não são o animal de curral que mais preocupa os cientistas.
Se o H5N1 começar a circular em porcos, as chances de surgir uma versão humana aumentariam drasticamente. Isso ocorre porque os porcos podem ser infectados por vírus de aves e humanos ao mesmo tempo. Isso cria um terreno literal de reprodução de vírus.
Os vírus da gripe são extremamente mutáveis, em parte porque são feitos de RNA, uma molécula genética semelhante ao DNA, mas com uma grande diferença: os vírus de RNA não têm mecanismo de revisão durante a replicação.
Portanto, quando um vírus da gripe se reproduz dentro de uma célula hospedeira, ele está propenso a cometer erros de cópia, aumentando a taxa de mutações. Isso significa que um vírus de RNA como o H5N1 é particularmente bom em evoluir para infectar novas espécies.
Mas os vírus da gripe têm outra ferramenta que os torna ainda mais perigosos: a capacidade de trocar o material genético com outros vírus. Esse processo, conhecido como rearranjo, é um pouco como embaralhar dois baralhos de cartas diferentes – você acaba com um pouco dos dois. Se um porco pegar o H5N1 de uma ave e pegar, digamos, qualquer vírus da gripe sazonal que esteja circulando entre as pessoas, os dois vírus entrarão em contato e, por rearranjo, adquirirão aleatoriamente as características um do outro, um novo terceiro vírus.
O que acontece depois depende do acaso. Muitos desses vírus recombinados morrerão sem que ninguém os perceba. Mas, ocasionalmente, a recombinação cria um vírus cujo código genético lhe dá vantagens que lhe permitem prosperar.
Se essas vantagens incluírem a capacidade de se reproduzir e se espalhar entre os seres humanos, e se ele tiver a oportunidade de começar a se espalhar em uma população, poderá se tornar mais um novo patógeno humano. Acredita-se que o vírus pandêmico H1N1 de 2009 tenha começado em porcos domésticos na região central do México.
Em 30 de outubro de 2024, o Serviço de Inspeção de Saúde Animal e Vegetal , parte do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, anunciou que havia encontrado o H5N1 em uma pequena fazenda no Condado de Crook, Oregon. Dois porcos testaram positivo para uma cepa de H5N1 que está se espalhando por aves selvagens, aves e gado, embora pequenas diferenças genéticas sugiram que os porcos adquiriram o vírus de aves selvagens.
Embora não haja evidências de que o H5N1 esteja se espalhando atualmente em fazendas comerciais de suínos, o caso do Oregon sugere que aves, suínos, gado e outros mamíferos estão transmitindo o vírus entre si com mais frequência do que os especialistas sabem. “Temos que ser muito cautelosos para não interpretarmos resultados como esse”, afirma Binnicker. "Onde há fumaça, há fogo. Não é motivo para alarme, não é motivo para pânico, mas não podemos ignorá-lo."
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2. Um surto descontrolado em gado leiteiro coloca todos nós em risco
Mesmo que evitemos infecções por H5N1 em suínos, um vírus pandêmico humano poderia surgir da epidemia de vacas leiteiras. Assim como os suínos, o gado também pode ser infectado por vírus humanos e de aves ao mesmo tempo. Os cientistas acreditam que a recombinação é um pouco mais improvável no gado devido a certos aspectos de sua fisiologia.
No caso do gado leiteiro, os especialistas estão mais preocupados com o fato de os seres humanos se tornarem o local de reprodução.
A presença do vírus em fazendas de gado leiteiro expõe muitas pessoas – trabalhadores de fazendas e suas famílias, amigos e membros de suas comunidades – ao vírus. E uma versão humana da gripe aviária é perfeitamente capaz de surgir, por meio de rearranjo, de uma pessoa infectada tanto com a gripe aviária quanto com um vírus da gripe sazonal.
A próxima temporada de gripe aumenta esse risco. “É provável que haja uma ampla transmissão e disseminação de vírus da gripe humana na população”, diz Binnicker. “Se tivermos um trabalhador rural infectado com uma cepa humana de influenza e ele também estiver trabalhando com uma vaca leiteira infectada com influenza aviária, o evento de rearranjo poderá ocorrer no ser humano se ele for infectado com os dois vírus ao mesmo tempo.”
As fazendas e granjas têm lutado para conter os surtos no mundo
A contenção do surto entre os bovinos nos Estados Unidos foi importante para reduzir a possível ameaça à saúde pública em geral. Quanto menos vacas forem infectadas, menos oportunidades o vírus terá de entrar em outros animais de fazenda, como porcos ou humanos.
No entanto, o setor pecuário e seus órgãos reguladores têm tido dificuldades para fazer isso em todo o mundo. Ao contrário dos criadores de aves, que têm décadas de experiência com o H5N1, o setor de laticínios foi pego de surpresa com o surto ocorrido nos Estados Unidos. “Não tivemos esse tipo de desafio de um vírus por muitas gerações”, comentaJaime Jonker, diretor científico da Federação Nacional de Produtores de Leite, um grupo do setor. “Não temos esse mecanismo bem preparado de entrar em ação.”
“Todo mundo ficou surpreso, porque nunca tinha visto, até então, em nenhuma espécie que eu saiba, no leite”, afirmou Jim Roth, diretor do Centro de Segurança Alimentar e Saúde Pública da Universidade Estadual de Iowa. “Foi uma situação muito incomum.”
O vírus parece se espalhar entre as vacas principalmente por meio do contato com o equipamento de ordenha. Em seguida, ele se acumula em concentrações tão altas no leite das vacas infectadas que é extremamente difícil impedir que ele se espalhe. Os fazendeiros tentaram usar desinfetantes nos equipamentos de ordenha e até mesmo diretamente nas tetas das vacas, sem sucesso. “A quantidade de vírus que está sendo produzida no leite foi tão grande que é difícil parar”, diz Roth.
As medidas mais rigorosas chegaram tarde na Califórnia, onde o surto se espalhou pelas fazendas do Central Valley. O vasto tamanho de seu setor de laticínios – o estado tem 1,7 milhão de gado leiteiro, em comparação com os 200 mil do Colorado – e a proximidade de suas fazendas representaram um desafio para os esforços de contenção, dizem os especialistas.
No Brasil, com a recente emergência localizada no setor de avicultura, as medidas estão sendo tomadas o mais rápido possível nas granjas relacionadas com a influenza aviária de alta patogenicidade no país. Na propriedade foco já ocorreu o descarte de todas as aves e de seus ovos e está sendo realizada a limpeza e desinfecção de todas as instalações.
Adicionalmente, o Ministério da Agricultura brasileiro informou que os ovos, provenientes da propriedade em foco, foram completamente rastreados e a destruição destes está em andamento, para então se iniciar o processo de limpeza e desinfecção dos incubatórios. Além disso, há investigações em curso em outros estados por suspeitas de mais casos de gripe aviária – com amostras coletadas em análises.
O que faria soar o alarme da gripe aviária em relação aos humanos? E o que devemos fazer caso isso ocorra?
Há evidências de que o H5N1 está se adaptando rapidamente à fisiologia humana. Uma única mutação genética na cepa de vacas leiteiras é suficiente para dar a ela a capacidade de se ligar facilmente às células das vias aéreas humanas, de acordo com um estudo publicado este mês na revista Science.
Essa mutação foi encontrada na amostra de vírus coletada do adolescente na Colúmbia Britânica, no Canadá, e pode ter sido o que o deixou tão doente. Ainda assim, os cientistas dizem que ainda não há evidências de transmissão entre humanos.
De modo geral, o risco do H5N1 para a saúde pública é atualmente “baixo”, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos. Só que isso pode mudar em um instante com outro evento único de disseminação de uma cepa capaz de se espalhar de pessoa para pessoa. Provavelmente, ela apareceria primeiro como um pequeno grupo de doenças e se espalharia gradualmente, lentamente no início e depois rapidamente.
É impossível prever a gravidade caso isso ocorra: pode causar doenças leves, como a pandemia de influenza de 2009, ou doenças graves, como a influenza de 1918, que matou mais de 50 milhões de pessoas, ou algo intermediário.
Independentemente da gravidade, a detecção rápida e a resposta rápida são fundamentais para conter todos os surtos que surgirem relacionados à gripe aviária. Atualmente, os Estados Unidos têm duas vacinas candidatas contra o H5N1 e planejam fabricar 10 milhões de doses ainda em 2025, de acordo com o CDC.
Enquanto isso, a melhor coisa que a maioria das pessoas pode fazer é tomar a vacina contra a gripe sazonal, o que ajudaria a reduzir o nível de vírus sazonal em circulação e a chance de contágio. Os especialistas em saúde pública também desaconselham o consumo de leite cru — lembrando que o leite vendido em supermercado é seguro para consumo, pois passa por um processo de pasteurização.
Atualmente, é importante manter uma “vigilância ativa” nas pessoas com maior probabilidade de exposição, como os trabalhadores rurais. Por exemplo, em uma pesquisa com 115 trabalhadores rurais nos Estados Unidos, oito testaram positivo para anticorpos contra o H5N1, o que significa que em algum momento eles contraíram o vírus, e quatro desenvolveram sintomas.
Quais são os sintomas da gripe aviária em humanos?
Na população em geral, por outro lado, a prevalência de pessoas contaminadas é “extremamente pequena”, afirmou Eduardo Azziz-Baumgartner, médico epidemiologista do CDC. Embora o vírus da gripe aviária cause preocupação no setor produtivo e entre órgãos de vigilância, o Ministério da Agricultura e Pecuária do Brasil reforça que o consumo de carne de frango e ovos segue seguro. “A doença não é transmitida por meio da ingestão desses alimentos, desde que provenientes de estabelecimentos inspecionados”, afirma o comunicado oficial.
Mesmo assim, em caso de contaminação humana por contato direto ou indireto com aves infectadas ou alimentos vindos de locais contaminados ou não inspecionados, os sintomas da gripe aviária em humanos podem variar de leves – com alguns pacientes até mesmo assintomáticos – a graves. As principais manifestações relatadas incluem febre, tosse, resfriado, conjuntivite, sintomas gastrointestinais e problemas respiratórios, de acordo com a Opas.
O órgão de saúde explica que medicamentos antivirais são recomendados para pessoas com quadros graves ou em risco de desenvolver quadros graves devido a condições pré-existentes ou subjacentes, como no caso de idosos ou indivíduos com problemas de saúde crônicos. A orientação é que pessoas que apresentarem sintomas de gripe aviária entrem em contato com um profissional de saúde para receber o tratamento adequado.
Os seres humanos não têm imunidade prévia à gripe aviária, portanto, o vírus pode causar quadros graves da doença. Entretanto, a Organização Mundial de Saúde diz ser difícil generalizar a análise com base em dados históricos, já que o vírus tem evoluído. Desde 2003, cerca de 900 casos humanos de infecção por A(H5N1) foram relatados, com uma taxa de mortalidade superior a 50%.
Maggie Bartlett, diretora de programa da Global Virus Network e professora de virologia da Johns Hopkins School of Public Health, também nos Estados Unidos, acredita que as consequências de um possível vírus H5N1 humano são potencialmente tão graves que é necessária uma maior vigilância.
Ela defende a ampla disponibilização de testes rápidos para o H5N1 e um monitoramento mais sistemático do vírus entre animais e pessoas. Ela teme que o número real de pessoas que contraíram o H5N1 seja muito maior do que conhecemos. “Não estamos fazendo vigilância suficiente na população humana para saber o [número total] de casos humanos”, avisa ela. “Isso é algo que os cientistas vêm lamentando e preocupados há meses.”
Não faltam motivos para preocupação. É difícil prever quando e onde ocorrerá o alastramento – ou se ocorrerá de fato. O que sabemos é que a chance do surgimento de um vírus H5N1 humano é maior agora do que nunca.
Este artigo foi atualizado com a notícia do primeiro caso confirmado de gripe aviária em uma granja comercial no Brasil.
